“Ser uma liderança afro é ser um sujeito coletivo formado a partir da comunidade e para a comunidade”
– Nubia Regina Moreira
Nubia Regina Moreira, nasceu em São Luiz do Maranhão, mas muito cedo migrou para o Rio de Janeiro, onde se graduou em ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995). Tendo feito mestrado em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (2007), Nubia se doutorou em Sociologia pela Universidade de Brasília (2013) e atualmente é professora universitária, especialista em temas relacionados com o feminismo negro e ativista.
CEAF: Como é que você começou o seu processo de liderança? Como você se tornou uma ativista?
Nubia Regina Moreira: Foi no Rio, onde vivi até os anos 2000. Lá, ainda na graduação, eu entrei no movimento negro de mulheres, no fórum de mulheres negras do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que estava fazendo a minha graduação. Ali eu fui sendo formada nesse movimento, o fórum, conhecendo essas organizações de mulheres negras. Foi esse movimento que me levou a escrever uma dissertação sobre as feministas negras no Brasil. Aí, durante esse processo de formação, graduação e pós-graduação, eu me torno professora e me integro à docência do ensino superior, e daí eu começo a trabalhar com a licenciatura, que aqui chamam de formação de professores. Daí, nessa docência eu começo a agregar também as meninas negras que estavam chegando na universidade. Eu trabalho numa universidade que fica no interior da Bahia. Como após as ações afirmativas, os negros e negras chegam à universidade, eu começo a agregar essas meninas negras que estão na universidade para trabalhar nossas questões. Eu tinha a intenção na época de fazer um trabalho de reforço escolar, já que elas vinham das classes menos favorecidas e quando chegavam na universidade tinham muito dificuldade com o conteúdo. Depois, após as reuniões com essas meninas, elas toparam, fizemos a primeira reunião na casa delas, fomos nos agregando, eu fui atuando como professora e também como aquela que já tinha uma trajetória de militância e também outras que já estavam lá, outras mulheres que estavam iniciando a pós-graduação, e que também vinham de uma experiencia com militância, a gente foi agregando e daí criamos o Coletivo Pretas da Dió. Foi esse o meu processo.
CEAF: Para você, qual é o significado de ser uma liderança afro?
Nubia Regina Moreira: Então, para mim, olhando para a minha trajetória, vendo o lugar onde me encontro hoje, sendo uma professora do ensino superior, eu tenho isso claro, de que foi uma movimentação feita pelas minhas ancestrais, e, portanto, isso significa que tem aí na minha trajetória muito choro, muito sangue, muita tormenta, e muita alegria também. Então para mim, ser uma líder, é retroalimentar a comunidade negra em prol da sua libertação das opressões, em prol da sua auto valorização, em prol da sua auto definição, então para mim a liderança não pode estar simplesmente personalizada na figura do indivíduo, mas tem que estar sempre pensando em que forma a comunidade, essa comunidade do qual ele faz parte, e que também constitui ela, vai ser ao alvo da sua luta. Então o alvo da minha liderança é que a gente consiga fazer que a gente, que nós negros e negras, que a gente consiga se livrar das opressões que ainda são muito fortes em relação a nós. Então, é isso, para mim, ser uma liderança afro é ser um sujeito coletivo formado a partir da comunidade e para a comunidade.
CEAF: E quais são as particularidades especificas do contexto no qual a sua liderança é exercida? Quais são os desafios enfrentados aí?
Nubia Regina Moreira: É muito boa essa pergunta, gostei muito dessa pergunta. Então, há muitas particularidades né, então, como eu falei no início da entrevista eu moro numa região chamada Região Sudoeste da Bahia, na cidade de Vitória da Conquista, que tem como marco étnico a conjugação entre brancos e indígenas. É assim que eles contam a história da cidade. Ela se denomina como a suíça baiana, porque é uma cidade que se vê muito branca e devido a sua topografia, é uma cidade que fica no planalto, a 900 metros do nível do mar, então faz frio. Quando eu cheguei aqui nos anos 2000, o que nós tínhamos aqui de expressão do ativismo do movimento negro eram as APNs, agentes de pastorais negros, que é ligado à Igreja católica e alguns ativistas ligados ao movimento negro unificado. Não existia nenhuma discussão sobre mulher negra, mesmo no meio dessa militância. Já existia também, existe também as expressões negros religiosas, as manifestações culturais como as escolas de samba, existiam, não existe mais, como a lavagem do beco, que era feito pelas comunidades negras, aí, a lavagem era feita pelas mulheres, tanto ligadas à religião, ou ligadas com o comercio formal ou ligadas com as manifestações mais profanas, tipo dança, reisado, então tudo isso foi desaparecendo e eu vou me firmando tanto na universidade como na própria cidade. Juntamente com alguns professores que vieram de outras cidades e que já eram do movimento negro unificado e juntamente com as APNs vou entrando também no incentivo e também nas atividades para negros e carentes, dando aula gratuita, retroalimentando as comunidades negras. Muitos desses estudantes chegam à universidade a partir das cotas, das ações afirmativas, porque esses grupos, as APNs e o MNU vão fazer também essa luta por dentro da universidade e com o poder público local.
É bom que se diga que essa cidade, desde que eu cheguei aqui acho até 2018, foi comandada pelo PT e houve certa facilidade em levar essas pautas ao poder público. Então muitas das lutas vão chegando a Vitória da Conquista a partir destes ativistas e também com alguns professores ativistas intelectuais como eu, que estavam na universidade. É assim que a gente vai se configurando numa cidade que não se vê negra, uma cidade bastante racista, com poucos incentivos à cultura, uma cidade de 350 mil habitantes, que tem uma economia atividade pelos setores de serviço, pelo setor de educação, de redes hospitalares. Hoje nós ainda contamos no poder publico com a coordenação de igualdade racial, mas já não contamos com o partido dos trabalhadores no poder público, então nós continuamos fazendo ativismo por meio das atividades de extensão universitária ou por meio dos fóruns autônomos. A luta aqui ainda é muito autônoma, quando eu digo autônoma eu quero dizer que ela não é institucionalizada, nem no poder público, por meio de uma secretaria, nem em uma instituição que tenha um CNPJ.
CEAF: E quais foram os desafios que você enfrentou na construção da sua liderança?
Nubia Regina Moreira: Então, eu sou de uma geração anterior às cotas nas universidades públicas, sou de uma geração que lutou para que a ONE reconhecesse que as questões raciais eram importantes para a luta estudantil. Então, sou aquela geração em que éramos os únicos na graduação e quase nenhum de nós éramos professores universitários. Então eu já vou receber como professora aqueles estudantes que vem a partir das ações afirmativas e isso é uma novidade muito feliz para nós, porque é como se a gente tivesse assistindo a materialidade na nossa luta, mas ao mesmo tempo é de muita resistência no seio da universidade. Eu lembro que mesmo morando no interior da Bahia, havia aquele discurso de que as ações afirmativas contribuiriam para o rebaixamento das universidades, ou seja, uma fala racista que é decorrente do ingresso de um grande número de indígenas e negros na universidade. Então, essa luta vai começando a evidenciar uma realidade que é a da permanência e aí precisa fazer uma política por dentro da universidade.
Por isso que eu acho muito importante demarcar na minha entrevista esse ativismo intelectual, porque se não tivermos nenhum de nós dentro da universidade ou se formos muito pouco, nós não conseguiremos fazer um enfretamento dentro da universidade e fazer com que essa universidade se abra para essa população e não só se abra para essa população, mas também que fomente políticas de incentivo em forma de bolsa, assistência estudantil, ações afirmativas na pós graduação para que essa população permaneça na universidade, daí é aquela coisa né, tem uma dinâmica que é interna à universidade, nas negociações, nos contextos universitários e tem uma dinâmica que é externa, da política do ensino superior e essa política do ensino superior no Brasil está cada vez mais reduzindo verbas na universidade pública, o que acaba atingindo nossa população muito frontalmente, pois nossa população que chega na universidade é a mais pobre e se nós não temos dinheiro, incentivo para a pesquisa, para a universidade pública, então a gente não tem bolsa para garantir que nossos alunos sobrevivam, a gente não consegue garantir assistência estudantil. Então a gente precisa enfrentar uma luta dentro da universidade, uma luta interna e outra luta que é externa.
CEAF: Quais são as emoções enfrentadas pela população negra neste contexto racializado? Quais os sentimentos? E como você lida com isto?
Nubia Regina Moreira: Essa é outra pergunta boa. Essa semana eu conversava com uma pessoa branca e ela me contava que havia vivido a vida toda com amigos negros e esses amigos negros retardaram a visão dela sobre o racismo porque eles não se admitiam como negro. Eu falei para ela: nossa, essa é uma reação compreensível, porque quando você se sabe negro e se reconhece, você vive uma vida cotidiana de dor. Eu falava para ela, eu sou negra, meu filho é negro e presta atenção nessa fala, nós temos uma cachorrinha pug e ele não sai com a cachorrinha para passear porque ele diz: quem vai acreditar que essa cachorrinha é minha. Porque a raça pug é uma raça cara, né. Já imaginou o que é viver, eu uma mulher com 52 anos, o que é ter um filho que não pode e não tem o direito de ir e vir garantido, que não pode usar o cabelo dele como ele quiser, que não pode usar roupa larga, que não pode sair com a cachorrinha. Então, às vezes é compreensível que nossos irmãos negros não queiram se reconhecer, embora mesmo a negação do nosso ser negro não impeça que essa pessoa seja vítima de racismo.
Nós vivemos em um adoecimento psíquico causado pelo racismo. Nós negras e negras que temos consciência dos nossos direitos, sabemos o que é ser violados e sabemos que qualquer ação institucional e do poder público sobre nós tem consequências, mesmo sabendo dos nossos direitos, nós desenvolvemos defesas e tecnologias que permitam fazer que as coisas não piorem para nós, porque nós somos desacreditados. Então, é assim, eu faço terapia, vou para a religião afro-brasileira, tento ficar perto dos meus filhos. Mas tem horas que eu tenho vontade de exterminar todos os brancos. Agora estou desenvolvendo uma estratégia que é não ser mais benevolente com eles, não me interessa ser benevolente com eles, não me interessa às vezes ter amizade com eles, porque a amizade que eu tenho com eles é muito a partir do status social que eu tenho na universidade, mas os filhos deles, na vida deles não se relacionam com os negros, nem para ser aliados e nem para dizer que são vizinhos. Então não dá, eu já estou muito madura para compreender que eles não são os nossos aliados.
CEAF: E como é que o território resiste a este contexto de violência?
Nubia Regina Moreira: Aqui a gente tem os grupos de mulheres negras, nos quais nós trabalhamos entre nós. Temos o samba, as religiões afro brasileiras, as terapias, temos as amigas, temos a capoeira, temos no território tudo isto, para estarmos entre os nossos e sentirmos naquele momento segurança emocional, afetiva e física, para sentirmos que a nossa vida vale a pena, que nossa vida é valorosa, e temos também a família. Então, são esses momentos, pois saindo desses espaços a gente sabe que está na guerra, mais do que na guerra, a gente está na exposição, parece às vezes que a gente está no mercado, sabe aquele mercado de venda de escravos, só que a diferença é que a gente agora pode andar, pode se locomover, mas é uma locomoção vigiada o tempo todo. Então, esses espaços são de afago no coração, de acalentar a alma, esfriar a cabeça, centralizar no foco de valorização da sua vida e da família.
CEAF: Qual é a importância da sua liderança para os territórios? Quais são os impactos gerados pela sua liderança?
Nubia Regina Moreira: Então, eu agora sou parte do conselho municipal da mulher aqui do município. Eu assumo o posto das pessoas que fazem trabalhos importantes na comunidade local em prol da vida das mulheres. Na universidade já formei mais de 20 pessoas que estão na pós-graduação. Minha liderança está tanto no ativismo intelectual como na formação de mulheres negras por dentro da universidade e fora dela a partir dos grupos de mulheres, uma formação mais orgânica, eu chamo de ativismo, ativismo intelectual, porque dentro da universidade eu falo de ativismo, no sentido de não deixar que as políticas de permanência, as políticas da presença dos negros na universidade, para não deixar que sejam diminuídas, então é isso, é um pouco isso. Já ganhei alguns prêmios também, estou tendo um reconhecimento da luta que temos com outras mulheres. Ainda é uma luta muito sofrida, que precisa ser ampliada para a cidade reconhecer a contribuição das mulheres negras para o município. E para terminar, eu tenho que contar que todos os grupos que vieram depois dos pretas da Dió se inspiraram nele, então, notadamente elas falam que eu sou uma inspiração e isso é uma conquista.
CEAF: Como é que a gente pode passar para um regime democrático de racializado para um regime democrático pleno?
Nubia Regina Moreira: Então, essa é uma questão que tem dois lados. Eu acredito que para viver num regime democrático de plena igualdade de direitos a gente precisa cada vez mais intensificar as lutas pela ocupação dos espaços de poder. Isso significa contar com homens e mulheres que tenham como perspectiva a auto elevação das comunidades negras. A gente precisa colocar essas pessoas nesses espaços de poder, no legislativo, no judiciário, a frente das mídias sociais, das redes sociais, nos meios de comunicação, porque é assim que a gente vai instituindo a democracia representativa e porque é partir da democracia representativa, nesse lugar de representação, que a gente vai poder conferir legitimidade às ações dos nossos representantes a partir de leis, a partir de mudanças, em perspectivas de ver por exemplo os delitos, de não ter a raça como pressuposto, de racializar uma pessoa pela sua epiderme, de pressupor, antecipar que aquela pessoa é criminosa, que está alinhada neste momento. A gente precisa também barrar as políticas de encurtamento dos setores públicos de serviço, porque são esses setores que garantem o acesso da população preta aos serviços essenciais como educação, transporte, saúde. Então, esse encurtamento dificulta o acesso e isso faz com que a população negra fique cada vez mais precarizada, porque ela conta com esse serviço público. A gente também não pode desconsiderar que a gente vive num sistema capitalista, que se alia ao racismo para aprofundar as desigualdades, por meio de vários mecanismos, pois esse sistema já nasce pensando em ser um sistema que não há espaços para todos, então esse sistema vem aprofundar as desigualdades, esse sistema tende a piorar a vida das populações negras, periféricas, indígenas.
CEAF: Para você o que significa igualdade? Como você a descreveria?
Nubia Regina Moreira: Então, para mim, igualdade, a partir de um registro teórico-prático que tenha a democracia como horizonte, significaria que nós fôssemos sujeitos plenos de direitos sociais políticos econômicos. Para mim igualdade seria isso, tendo como pressuposto a democracia como horizonte de convivência social. Então, não tendo isso não há igualdade possível dentro do regime democrático. Para que haja isso é necessário que a gente entenda a igualdade em duas dimensões. Vou usar uma teórica, da teoria política, a Nancy Fraser, que eu acho interessante o que ela fala, que só dá pra gente conseguir igualdade a partir de duas dimensões. A redistribuição dos bens de riqueza e o reconhecimento que passa pelas identificações dos vários segmentos sociais. Enquanto isso não existir não haverá igualdade possível.
CEAF: Por que é a gente pode lhe considerar uma voz da igualdade?
Nubia Regina Moreira: Primeiro porque eu tenho, eu não quero usar a palavra consciência, porque eu carrego no corpo a marca de uma trajetória que foi construída a partir da marca da ancestralidade, porque o meu discurso é da coletividade. Porque eu tenho a missão, é quase uma vocação, de elevar a população negra dentro dos limites que eu tenho para fazer. Eu sou uma voz da igualdade porque eu preciso, posso e construo um mundo de bem-estar e de auto valorização, de solidariedade para a população negra, e não só para ela, mas para todas as pessoas, mas o meu foco é a população negra, que do meu ponto de vista expressa a maioria populacional na diáspora. Então sou essa voz da igualdade porque eu consigo compartilhar esses bem materiais e imateriais que eu possa dividir em prol de outras pessoas negras, principalmente mulheres e meninas negras. Sou a voz da igualdade porque eu carrego em mim a força das ancestrais femininas que me trouxeram até aqui e como elas conseguiram fazer com que eu chegasse até aqui, então eu não posso desistir de fazer com que outras cheguem até os lugares onde eu ainda não cheguei, mas que é um caminho que eu vou construir para outras gerações.