“Não podemos negar a importância disso, de ver que a minha imagem mesmo, o meu corpo, eu a mulher preta, nesse espaço de poder que é a universidade e como pesquisadora ou como profissional, assistente social. Só de outras estudantes negros me verem nesses espaços, eu acho que é algo muito importante. Esse é um dos pontos que eu considero importante, e depois por levar à mesma as nossas pautas, levar as nossas pautas para o espaço da universidade em primeira pessoa, levar essa escrita em primeira pessoa demarcando que somos nós falando de nós, de nossas dores”
– Marilia do Amparo
Assistente Social, mestra em educação, doutoranda em memória, linguagem e sociedade, Marilia do Amparo é pesquisadora e ativista. Sua liderança está voltada para as questões relacionadas com a entrada e permanência da população negra na universidade, um espaço, que segundo a líder é altamente branco, mas que precisa ser ocupado pela população negra. Atualmente Marilia também participa do Observatório de Mulheres Negras, em Vitória da Conquista (Bahia), espaço que propõe várias discussões acerca das opressões que atingem as mulheres negras e dá visibilidade às vozes de pesquisadoras negras. Marilia conversa conosco sobre sua trajetória e sobre questões relacionadas à universidade.
CEAF: Você pode nos contar um pouco da sua história, da sua trajetória? Como foi que você chegou nos processos de liderança?
Marilia do Amparo: Eu nasci na cidade de Ipiaú, é uma cidade aqui no sul da Bahia, de uma família de classe popular, passando muitas dificuldades. Sou um dos nove filhos e sou a mais nova, então meus irmãos passaram muito mais dificuldades do que eu. Mas fui muito inspirada na trajetória de meus irmãos que ingressaram na universidade, já participavam da militância em defesa tanto da questão de raça, quanto da questão de gênero, em defesa dessas discussões, dessas faltas. Isso foi me aproximando muito desse debate, até eu me reconhecer como uma mulher negra. A partir disso eu iniciei a minha militância no movimento chamado Pastoral da Juventude que aqui tem uma ligação com a Igreja Católica. Lá, na minha adolescência, nós já participávamos de eventos como o Grito dos Excluídos, que era um evento em que a gente saía às ruas da cidade denunciando as desigualdades, com pautas mais específicas do próprio município em defesa dos jovens da Periferia e também das escolas públicas. A gente fazia um outro movimento chamado Semana da Cidadania onde nós levávamos discussões para os jovens das escolas públicas.
E sempre essa temática racial surgia, principalmente por sabermos que no Brasil discutir questão social é discutir questão racial, já que as duas coisas estão intimamente associadas. E é assim que eu iniciei minha trajetória. Logo em seguida eu fiz a opção para fazer a faculdade de Serviço Social. Eu iniciei como bolsista do ProUni, uma política do governo Lula na época, e aí eu iniciei como um cotista. Isso ficou muito em evidência na universidade. Era uma universidade privada, repleta de pessoas brancas e ricas, e eu lá: uma menina preta, adolescente. Isso ficou muito forte, foi muito forte também esse processo de ingresso na universidade. Posteriormente eu dou continuidade à minha militância, a minha militância principalmente voltada para a universidade, muito em defesa do movimento estudantil, fazendo essa discussão no âmbito da universidade. E aí eu ingresso como assistente social da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, enquanto assistente social também vendo esse processo dos jovens negros entrarem na universidade. E aí essa ideia de que aqui é muito forte partiu das políticas do governo do PT, do governo Lula, a gente sabe que aumentou o número de jovens negros que ingressam nas universidades, mas é muito precária a forma com que esses jovens conseguem se manter na universidade.
A gente inicia essa discussão de permanência estudantil e de busca por defesa de benefícios para esses estudantes e essas estudantes, para que pudessem ter condições de permanecer na universidade. Então meu papel dentro da universidade, de 2014 até 2019, é esse de lutar por defesa desses jovens e dessas jovens no âmbito da universidade pública. E aí discutindo moradia estudantil para quem não tinha onde morar; discutindo bolsas em dinheiro para esses jovens mais vulneráveis; e ampliando essa discussão dentro no âmbito da universidade. Em 2016 eu entro no mestrado em Educação na mesma universidade em que eu vou discutir também assistência estudantil. Então eu acabei me ingressando mesmo nesse mundo da assistência estudantil por entender também como caminho possível para que nós, jovens negros, possamos tomar esses espaços de onde nós fomos historicamente excluídos e excluídas, e é um espaço muito importante. A universidade, muitas vezes, ainda é um espaço de opressão, é um espaço que a branquitude toma mesmo, então é muito opressor esse espaço.
Mas nós precisamos estar e precisamos buscar garantir que esses jovens que conseguiram alcançar esses espaços tenham condições de permanecer, de concluir seus cursos. Então, nesse sentido, eu discuto no mestrado permanência estudantil de jovens em moradia estudantil. E aí é a partir dessa minha pesquisa de mestrado eu propago esses resultados dessa minha pesquisa, faço algumas funções junto ao movimento estudantil também daqui da universidade. Mais recentemente, em 2020, o ingresso no doutorado em Memória, aqui ainda da UESB, e discuto violência contra mulheres no âmbito da universidade. A partir dessa pesquisa eu comprei essa discussão mais voltada para a questão de raça e gênero para discutir as violências que historicamente as mulheres negras vêm sofrendo desde a colônia até os dias atuais, em todos os anos. E a gente percebe que mesmo ingressando na universidade ainda é muito difícil que essas mulheres consigam permanecer, que elas consigam condições de concluírem seus cursos, enfim, os diversos tipos de violências que elas sofrem. Atualmente eu participo do Observatório de Mulheres Negras, aqui em Vitória da Conquista, e a gente propõe várias discussões também com esse olhar muito específico, da Interseccionalidade, das diversas opressões que atingem essas mulheres, que atingem a nós mulheres negras.
CEAF: E porque é importante ser uma líder negra, ser um líder afro dentro do contexto da universidade?
Marilia do Amparo: Sim, é muito importante, primeiro pelo processo de representatividade que nós discutimos atualmente. A gente discute que toda a nossa luta não pode se resumir à reivindicação por representatividade, como se isso bastasse. Porém, não podemos negar a importância disso, de ver que a minha imagem mesmo, o meu corpo, eu, a mulher preta, nesse espaço de poder que é a universidade e como pesquisadora ou como profissional, assistente social. Só de outras estudantes negros me verem nesses espaços, eu acho que é algo muito importante. Esse é um dos pontos que eu considero importante, e depois por levar à mesma as nossas pautas, levar as nossas pautas para o espaço da universidade em primeira pessoa, levar essa escrita em primeira pessoa demarcando que somos nós falando de nós, de nossas dores. Não são outras pessoas que estão falando as nossas dores. Então, acho que é muito importante demarcar isso, como as próprias feministas negras têm trazido a importância de a gente falar disso, de nós sermos protagonistas da nossa fala na nossa história; como historicamente a gente sofre com essa questão de ser sempre o outro falando de nós, de nossas dores. Então eu considero extremamente importante tomar espaço como uma pessoa, uma mulher preta que faz. É claro que eu não estou falando de todas as mulheres negras, senão também nós entraríamos aí no risco de resumir, de eu achar que eu sou capaz de falar com todas as mulheres negras. Não, não sou, mas falo das dores do racismo que eu sofro na pele, que ninguém me falou, eu sofri na pele. Então acho que é muito importante.
CEAF: Já que você falou dessas dores provocadas pelo racismo, e pensando um pouco na universidade, eu gostaria de perguntar quais são as emoções, sentimentos e dores que uma pessoa negra, especificamente uma mulher negra, sente ao estar nesse contexto, frente a toda essa estrutura?
Marilia do Amparo: São várias dores porque, como eu falei no início, no Brasil pelo nosso passado a gente não tem como separar questão racial de questão social, pensando no racismo como algo estrutural. Como é sabiamente fala Silva Almeida: “o racismo estrutura as relações a nossa sociedade”. Então eu falar de uma universidade pública, especificamente falar de jovens mulheres, focando aqui nas mulheres negras na universidade pública, estou falando de mulheres pobres; de mulheres que passam diversas dificuldades para conseguir ingresso no ensino superior; mulheres que rompem com ciclo de gerações, um ciclo enorme, um ciclo da pobreza, ciclo da exclusão. Muitas vezes, na minha pesquisa, aparece isso: são as primeiras a ingressar na universidade, elas nunca tiveram contato com a universidade. Então para elas é algo muito importante assim, uma possibilidade de sair desse ciclo, entre toda a sua família (sua avó, sua mãe) elas nunca tiveram essa oportunidade, por isso é muito importante.
Essas dores se apresentam de várias formas. Seja a própria ideia da academia que nós temos hoje: a universidade como um ligar frio; como um lugar dos donos do saber; como lugar que não podemos falar do subjetivo, não podemos falar das nossas dores, temos que fazer uma ciência que seja distante do chão onde pisamos, que seja distante do que a gente vive. Então quando nós ocupamos esse espaço, a gente tem essa possibilidade de fazer esse enfrentamento. E esse enfrentamento se dá desde o tema que nós escolhemos discutir, que tem a ver com que nós vivenciamos, seja na nossa escrita, seja nos referenciais que a gente escolhe para debater onde a gente foge desse academicismo tradicional e excludente; então é todo um conjunto. Então essas dores se dão nesse sentido, nessa opressão que a gente sabe que nós passamos, nas dificuldades básicas, as dificuldades que enquanto o meu colega branco (filhinho de uma elite) tem a possibilidade de simplesmente ir para a universidade, o jovem negro pobre tem que pegar três ônibus, ele pode não ter esse dinheiro para pegar três ônibus para chegar na universidade, cansado de um dia de trabalho. Então é um conjunto de coisas que dificulta a permanência desse jovem e dessa jovem na universidade, ele sofre diversas dificuldades para que ele consiga; e muitas vezes ele não consegue. Os dados estatísticos hoje já trazem essa realidade de que houve o ingresso muito grande, um número maior de jovens negros que acessaram a universidade a partir da política de cotas, a partir das políticas da última década do governo PT, no entanto há também um número muito grande de evasão desses jovens, que desistem não por querer, mas por essas condições que eles não conseguem superar.
CEAF: E de que forma você lida com esses sentimentos, com essa dor, com esse desconforto?
Marilia do Amparo: Eu costumo falar que eu fugi muito de discutir questão racial na universidade porque é algo que é muito doloroso. Quando eu comecei a discutir, ter contato com as primeiras leituras, ainda é assim, mas no início muito mais de você começar a fazer as leituras e você parar para chorar, entrar no processo de muita dor, de muito sofrimento. Não que tenha ficado no passado toda a opressão que nosso povo sofre, mas quando a gente faz um resgate histórico de memórias ligadas a escravidão, ao período colonial, a todo esse sofrimento e tudo o que foi negado e que é negado ao nosso povo, é algo que mexe muito conosco, porque, de fato, faz parte da nossa genética, do nosso DNA, não tem como não mexer. Então ainda hoje é um processo muito doloroso e por mais que doa eu acho que é importante a gente ter essa sensibilidade de não se desprender disso, também de a entendermos e não esquecermos o porquê que nós pesquisamos. Nós pesquisadores negros e negras precisamos ter isso muito evidente, o porquê que eu pesquiso, porque que eu discuto questão racial. E aí não é porque está na moda, não é porque alguém me falou que eu deveria pesquisar questão racial, é porque eu quero contribuir de alguma forma para que fique visível o tamanho dessa opressão e dessa desigualdade. A gente quer contribuir de alguma forma para que outras pessoas tenham acesso a esta discussão que nos foi negada. Toda vez que falaram da nossa história, falaram de uma outra forma, escondendo as nossas dores e também escondendo as nossas resistências. O que a gente quer também mostrar é isso, a gente não quer mostrar só as nossas dores, a gente tenta mostrar o quanto nós, povo negro, somos fortes, o quanto nós resistimos apesar de todas as tentativas de apagamento das nossas memórias, apesar de no Brasil isso ser muito forte. Nos livros didáticos, historicamente, nós fomos apagados, nós somos apagados da história. Foi contada a nossa história sempre de uma forma equivocada, demonizando o que é negro, e isso é forte, nosso vocabulário. E aí a gente precisa fazer esse exercício cotidiano de desmistificar isso, de dizer não nós existimos e nós estamos aqui apesar de tudo.
CEAF: Então, você falou dessa questão dos jovens que entraram na universidade, mas que não permanecem. Olhando para o contexto afro percebemos que há uma evasão muito grande. Como é que a gente pode fazer para que esses jovens permaneçam na universidade? Que estruturas precisam ser criadas para garantir nossos jovens afros terminem seus cursos?
Marilia do Amparo: A discussão sobre permanência estudantil tem ganhado força nos últimos anos, muito a partir das lutas dos movimentos estudantis, movimento organizado pelos estudantes há muitos anos, e inicialmente a discussão do movimento estudantil era ingresso, uma luta para que democratizasse o ingresso nas universidades; e atualmente é muito voltada para permanência, apesar muito nos nossos ainda estão fora da universidade. Não queremos dizer que todos os negros deveriam estar na universidade (não, isso é uma grande mentira), mas ainda aqueles que entram tem dificuldade de permanecer. E quando você traz “quais as estratégias que nós poderíamos pensar para garantir essa permanência”, todas as políticas que a gente consegue efetivar, materializar, Brasil só conseguimos através das lutas sociais, mas não conseguimos nada disso sem pressão popular. Então o caminho é esse, o caminho é o fortalecimento do movimento estudantil, é toda a sociedade olhar para esse acesso, essa permanência na universidade, como algo é essencial. E no atual contexto de desmonte de direitos, fica muito mais difícil porque a gente vê que uma das grandes discussões são os cortes que têm acontecido (corte de verbas nas universidades públicas) e cada vez mais a tentativa do governo de priorizar as instituições privadas pelos grandes interesses do grande empresariado.
Então não é interessante para os governos fascistas, como nosso, que tenhamos uma formação universitária como nós temos: crítica e que faz esse tipo de denúncia. Com todas as contradições das universidades, a universidade pública ainda é um espaço em que a gente consegue fazer essas discussões tão importantes, então o caminho é pelo movimento estudantil. Hoje o movimento de docentes também é um movimento que tem feito várias denúncias e tem lutado também a favor de uma política de permanência mais efetiva. E a política de permanência estudantil no Brasil ainda é muito falha, ela ainda fecha um pouco os olhos para a questão racial. O grande foco da política de permanência continua sendo a renda, então vulnerabilidade social, é focado na questão de renda. Isso para a gente ainda é um problema. É um problema a gente não situar a questão racial nestas políticas como algo essencial de se discutir, porque não tem como nós fecharmos os olhos para a questão racial no Brasil. Mas ainda assim, mesmo sendo uma política focada muito na questão de renda, é uma política que contribui de forma significativa para a permanência desses jovens. Para que melhore ainda mais, só por meio das lutas e da pressão popular mesmo.
CEAF: Atualmente, no Brasil, a universidade pública vem sendo desacreditada, sofrendo muitas críticas, inclusive do próprio Ministério da Educação, e estas críticas, às vezes sem fundamento, acabam chegando aos ouvidos das “pessoas comuns”, àquelas que não têm tanto acesso à informação da universidade pública. Então eu gostaria de perguntar como você, sendo uma líder social dentro da universidade, dialoga com esse grupo de pessoas? Como você faz para mostrar que a universidade pública é um espaço importante?
Marilia do Amparo: O mais importante é a gente também fazer essa discussão e eu acredito muito nessa discussão informal, seja na família, seja com um grupo de amigos, nos espaços informais. A gente ir desmistificando e demonstrando a importância que tem a universidade, não só universidade pública, mas também as instituições públicas. E a universidade tem feito um movimento que é muito importante de enfatizar muito a extensão, que é esse contato direto com a comunidade, ampliar esses espaços que nos colocam muito em contato com a comunidade. Seja no atendimento à saúde, que é aberta a toda a comunidade, que sejam outros projetos mais específicos de atendimento jurídico gratuito, entre outros. Eu acho que é nos espaços informais que a gente consegue alcançar de forma mais efetiva essa população que não pisou na universidade, que não sabe como se dá a universidade, mas que compra de certa forma esse discurso do governo atual de que a universidade é um lugar que não presta, é um lugar de pessoas que não querem nada, é o lugar de que pessoas que fazem uso de drogas, como eles costumam falar, e que a gente que a gente percebe que é muito um discurso para destruir mesmo o que a universidade pública vem construir.
Nesses espaços informais que eu citei, que não só eu, mas como várias pessoas têm utilizado para falar, que a gente costuma reproduzir um discurso que fala assim: “Certo, não é para investir em ciência e tecnologia, não é para investir nas universidades, mas como é que agora mesmo nós temos a vacina? Como que se faz essas pesquisas? É por meio disso, do conhecimento.” Então a gente acaba reforçando esse discurso de que um país só consegue avançar a partir do conhecimento científico, a partir dessas descobertas, a partir da valorização das pessoas que dedicam seu tempo para fazer ciência, para discutir e aprofundar conhecimento. É inimaginável a gente ver um governo, pessoas que estão em espaços de poder, reproduzir esse discurso, porque isso não é ruim só para determinados grupos, é ruim para um país inteiro, para uma nação inteira, é um total retrocesso a gente pensar dessa forma.
CEAF: E por que é importante para um jovem afro ocupar o espaço universitário, por que insistir em entrar na universidade, e não, por exemplo, investir em um curso técnico? Por que a universidade é ainda importante para nós população negra?
Marilia do Amparo: Interessante essa discussão. No Brasil esses dois lados, o ensino técnico e o ensino universitário, sempre foi uma discussão e foi na verdade imposto para nós, povo pobre preto, que nós devêssemos fazer o curso técnico. Qual é a base do curso técnico? A base do curso técnico é a preparação dos jovens para mão de obra, para servir o capital, ao sistema, nada mais é do que isso. Então são cursos rápidos, são cursos que é uma formação de mão de obra nada mais do que isso, o nome já diz “técnico”. Você vai adquirir uma técnica para algo e pronto. Não faço essa crítica nesse sentido, mas, às vezes, a gente sabe que é o que o jovem tem naquele momento. Como são cursos rápidos, eles possibilitam que você tenha um retorno financeiro mais rápido. Se é só aquilo que o jovem tem, é só aquilo que ele vai fazer, não tem outro caminho. No entanto a gente enfatiza o acesso ao ensino superior porque seria mais do que essa formação de mão de obra, é essa a ideia mesmo de uma formação crítica do ser humano, da formação em diversos aspectos. Tanto da formação de estar no mercado de trabalho, onde você vai desenvolver a profissão, mas além disso, para além dessa questão, você desenvolver um pensamento crítico, entender a organização da sociedade e fazer essas discussões muito mais amplas porque na universidade eu não só aprendo assim. Às vezes, a gente aprende muito mais com o movimento estudantil.
Foi um aprendizado gigantesco o movimento de ocupação das universidades e das escolas no Brasil, por exemplo. Foi um movimento gigantesco e você aprendeu o porquê aqueles jovens estavam ali, o que significa, pelo que eles estão lutando, contra o quê. No espaço da universidade você aprende nos corredores, você aprende na sala de aula, você aprende em todos aqueles ambientes. Então é incomparável o benefício de nós e incentivarmos cada vez mais o ingresso na universidade, do que no ensino técnico. O que tem acontecido no Brasil é o contrário, é o incentivo do governo cada vez mais para os cursos técnicos, agora vão ser lançados outros tantos, e é muito óbvio o motivo. É para que nós possamos esquecer das discussões críticas, dessas discussões que nós estamos fazendo, é a ideia de escola sem partido, de você não discutir esquerda e direita, de você não discutir questões ideológicas e tudo mais.
CEAF: E você considera que dentro das universidades é importante que existam grupos e espaços somente com pessoas (só pessoas trans, só mulheres, só homens negros, só pessoas não binárias) negras ou você acha que os grupos e as discussões devem ser mistos? Em que medida é importante fazer uma discussão mais específica?
Marilia do Amparo: Isso é complexo. Eu acredito em duas coisas. Nós, negros e negras, devemos estar em todos os espaços. Eu acho que isso é importante porque nem sempre as pessoas não negras levam as nossas pautas, a gente sabe que isso é uma realidade, a gente tem falado sobre isso de que vamos desmistificar essa ideia de lugar de fala como se só os negros pudessem falar sobre os negros. Não, as pessoas não negras, as pessoas brancas, podem falar sobre racismo e devem falar sobre racismo, e é muito importante que nós tenhamos pessoas brancas que falem do seu lugar. É importante demarcar o seu lugar. Você enquanto pessoa branca pode falar seus privilégios e contribuir na luta que já existe. No entanto, como a gente sabe que isso não tem uma proporção, é importante que nós estejamos nesses espaços. Quando você fala sobre espaços específicos dentro da universidade com pessoas negras, eu também considero importante porque a gente pode entender melhor as nossas dores e fazer o processo de organização de luta, porque é só através disso que a gente vai conseguir melhorias, tem sido assim sempre. Então na universidade é importante ter os grupos de discussão, os grupos específicos para a gente entender como tem sido a nossa atuação dentro desse espaço, quais são as nossas dificuldades dentro desses espaços, de que forma podemos nos organizar para lutar por isso. Inclusive, na minha pesquisa que está iniciando de doutorado no segundo semestre, uma das propostas que eu trago é isso, é a criação de um espaço dentro da universidade pode discutir violência contra mulheres negras, entendendo que essas mulheres negras sofrem violência de uma forma diferente das mulheres não negras; porque além do sexismo e das outras dores, ela sofre também com as dores do racismo. Então é importante sim a gente ter espaços mais específicos.
CEAF: Como é que a sua liderança contribui para a construção de uma de uma sociedade igualitária?
Marilia do Amparo: Eu acho que a minha militância contribui para esse espaço igualitário de maneira que apresenta essas discussões na universidade, aprofunda essas discussões na universidade e dissemina esse conhecimento em outros espaços, que nós não teríamos alcançado como os espaços da comunidade, os espaços informais de educação, como as associações, como as reuniões de bairro, como o próprio Observatório de Mulheres Negras, nas redes sociais também que, como eu falei, é espaço importante e atinge um outro público que não necessariamente está na universidade. Essa contribuição é muito nesse sentido de trazer essas discussões e de forma menos acadêmica possível. É importante que a gente se aproxime da linguagem da comunidade, que a gente não carregue esse peso do academicismo para esses outros espaços. Acho que isso contribui muito para que a gente pense a igualdade, para que a gente denuncie essas opressões.
CEAF: E a sua liderança sofre ou sofreu algum tipo de resistência dentro do contexto universitário?
Marilia do Amparo: Acho que só a pauta da questão racial já faz com que as pessoas abram muitos olhos. Então nunca é bem acolhido discutir e trazer essa discussão. Para o serviço social, por exemplo, é algo muito complexo. Inclusive com colegas que tiveram a mesma formação, mas que não reconhecem que é importante discutir questão racial e que não acham estranho que a maior parte dos usuários do serviço social sejam pessoas pretas, que a maior parte das pessoas empobrecidas sejam pretas, acham que é uma grande coincidência. Então a gente trazes essa discussão existe muita resistência, existe muita, inclusive, perseguição de a gente ter que provar o tempo inteiro a nossa competência, a gente provar o tempo inteiro que você não está falando isso simplesmente baseado na sua experiência, já que a nossa experiência de povo negro não é reconhecida, não é bem vista. Então você tem que o tempo inteiro, além de falar, além de provar, você tem que ir embasar para que as pessoas, não que aceitem porque essas pessoas não aceitam, mas engulam porque nós estamos ali, nós vamos continuar nesse espaço.
CEAF: E, Marília, porque eu posso lhe considerar uma voz da igualdade?
Marilia do Amparo: Você pode me considerar uma voz da igualdade porque eu contribuo com a minha prática nos diversos espaços, na comunidade, na minha cidade, no ambiente universitário, nas minhas pesquisas, na minha profissão. Eu contribuo para que esse país seja menos desigual, para que a gente consiga discutir mais e lutar mais contra o racismo, contra a desigualdade no Brasil por isso que eu me considero uma voz da liberdade.