“Nós colocamos a mão na massa para depois pautar isso de maneira acadêmica. Esse impacto de trabalhar com a comunidade antes de levar isso para dentro da universidade, talvez seja o principal impacto, essa foi a principal realidade que transformamos. Nós transformamos uma ação em algo acadêmico”
– Preta.ID.
A Preta.ID é uma organização que surgiu para sanar a demanda de projetos que associam juventude, negritude e saúde, tendo hoje dois responsáveis, Larissa Alexandre, estudante de Medicina da USP, moradora da zona leste de São Paulo, Itaim Paulista e Rafael Marques, estudante de Fisioterapia da USP. O projeto está focado em pesquisas e projetos que combatem o racismo nas práticas de saúde e nas políticas públicas de saúde.
CEAF: Como vocês chegaram ao ativismo? Por que vocês escolheram por esse caminho?
Larissa Alexander: No meu caso, entrei na faculdade de medicina depois de tentar por muitos anos. Aqui no Brasil nós temos o vestibular que não é fácil, então eu fiquei por alguns anos tentando passar no vestibular até que eu consegui. Quando entrei, eu percebi que muitas das questões que eram tratadas na faculdade não tinham muito a ver com o que nós víamos na realidade, principalmente na realidade das pessoas negras e das pessoas periféricas, que é o meu lugar de origem. Então, depois que entramos em pandemia, nós sabíamos que um dos principais problemas que iriam assolar a nossa sociedade seria o problema financeiro, econômico; e que essas questões iam acabar por prejudicar ainda mais a população negra. Assim, nós decidimos começar um projeto que fosse engajado com foco na população negra, justamente por entender esse universo, por estar não necessariamente inserido nessa situação de vulnerabilidade, mas por entender as demandas dessa população por vir de um contexto semelhante. Essa foi minha trajetória no ativismo.
Rafael Marques: A minha trajetória é um pouco semelhante à da Larissa. Eu vim de uma região periférica de São Paulo, mas de uma perspectiva diferente. Eu sempre cursei ensino privado e sempre fui o único estudante negro das turmas onde estive; inclusive até hoje na universidade. Isso me fez chamar a atenção para como essas pautas são debatidas dentro da universidade, como no meu curso, fisioterapia, que é um curso da saúde também, isso me trouxe essa relação entre ser negro e a saúde que essas pessoas têm. Conforme fui avançando pela graduação, percebi que cada vez mais isso tinha que ser debatido e pautado, e melhor do que outras pessoas são os próprios estudantes e pesquisadores negros para debater isso dentro da universidade. Isso é um pouco do que me motivou hoje e o que me fez pensar na questão de saúde da população negra, principalmente em uma época de pandemia.
CEAF: Quais foram os desafios e dificuldades iniciais que vocês encontraram? E quais foram as dificuldades que surgiram no decorrer do projeto?
Larissa Alexander: As dificuldades iniciais foram acessar de maneira mais efetiva a população. Primeiro, nós pensamos em fazer isso por meio da faculdade mesmo, então entrando em contato com as pessoas que já conhecíamos, falando com o pessoal que já estava mais próximo do serviço de saúde, que é próximo desse território que onde fizemos a maior parte das nossas ações, que um lugar bem próximo da USP. Percebemos no início que a maior dificuldade era acessar essas pessoas, falar com elas e elas nos levarem a sério, no sentido de que somos dois jovens fazendo um trabalho grande, audacioso como era no início. Então nós contamos com um certo descrédito que acabou caindo por terra, pois o nosso projeto deu muito certo. Depois que conseguimos acessar a comunidade, os líderes comunitários, nós percebemos que os problemas não eram só aqueles que a gente pensava. Talvez essa seja uma das maiores frustações de não poder fazer tudo ao mesmo tempo. Para mim, o que mais marcou de dificuldade foi isso.
Rafael Marques: As principais dificuldades foram basicamente essas que a Larissa disse. Sobre a falta de credibilidade que, às vezes, as pessoas colocam nas pessoas negras, ainda mais nas pessoas jovens. Então, muito do que fizemos foi reduzido porque nós não tínhamos a cara de uma pessoa que fariam um projeto assim, que financiariam um projeto desse nível. Quando as pessoas perceberam que eram estudantes, pessoas negras que tinham a mesma origem ou uma origem semelhante àquelas pessoas que estavam sendo beneficiadas ou que estavam sendo alvo daquela ação, as pessoas falavam “Nossa, como pode, né, como o mundo dá voltas, e eles realmente estão ajudando pessoas comuns”. Acho que essa é uma das coisas que mais dificultam a nossa relação com a universidade. As pessoas acabam tirando toda a credibilidade dos projetos que nós fazemos até que ele dá muito certo, até que consigamos bater a meta, que consigamos passar a meta, até que nós consigamos desenvolver um projeto que, se fosse divulgado ou publicizado, teria o mesmo nível de projetos institucionais da USP. Mas como foi um projeto tocado por apenas duas pessoas e não foi explorado, a imagem é de um projeto menor, com menos impacto. Acho que essas dificuldades são as principais, o que tá no meio do racismo de sempre diminuir a conquista ou mesmo o trabalho das pessoas negras.
CEAF: Em que medida podemos afirmar que essas dificuldades são estruturais?
Rafael Marques: Eu acredito que são estruturais nesse ponto das relações sociais, então são as próprias pessoas que reproduzem esse sistema. As pessoas, nesse nível cultural, das pessoas não entenderem que existe uma nova época onde pessoas negras estão à frente, que estão realmente inseridas dentro de um contexto que elas realmente podem fazer tudo que elas quiserem. São CEO’s, diretores, engenheiros, médicos, enfim, tem formação acadêmica. As pessoas ainda estão em cinquenta anos atras achando que as pessoas não têm formação, não têm qualificação. E ao mesmo tempo, tem a relação institucional de que um projeto que se fosse tocado por dois estudantes não negros, dentro da universidade, com certeza receberia muito mais apoio institucional e também dos órgãos estudantis, enfim, de todos os projetos que também estão vinculados a universidade. Mas é nítido que o fator racial influencia diretamente no apoio que você tem estruturalmente de todos as pessoas e lugares. Acho que é basicamente isso, da parte estrutural.
CEAF: Onde é desenvolvido o ativismo de vocês? Qual é o contexto, tanto geográfico como político social, no qual vocês estão inseridos?
Larissa Alexander: Nós estamos falando de um território que fica em São Paulo, a maior metrópole do Brasil; e nós somos da cidade de São Paulo. Falando num contexto de universidade, as nossas ações se concentraram numa comunidade que fica ao lado do principal campus da USP, que é a maior universidade do Brasil. Geograficamente, basicamente, isso. O nosso ativismo se concentrou nessa parte, então por mais que a gente fez uma ação dentro de uma favela, dentro de uma comunidade, essa comunidade fica ao lado do principal campus da USP. É uma periferia centralizada, poque é só uma questão de estrutura. A favela São Remo surgiu das pessoas que construíram a universidade. Os trabalhadores que trabalharam braçalmente pra construir os muros da universidade acabaram criando também um território, um espaço de moradia pra essas pessoas. Então nós fizemos ali nesse lugar, basicamente. Contextualizando, São Paulo – SP, USP e São Remos, que fica ao lado do principal campus.
Rafael Marques: Acho que é isso sobre a contextualização geográfica. O que dá pra complementar do que ela disse é que a formação da São Remos foi e ainda é composta por trabalhadores USP. Desde os anos 1960 ou 1970, diversas pessoas vieram pra São Paulo, principalmente da região nordeste do Brasil. Vieram para São Paulo a procura de emprego e existia uma construção muito grande dos prédios da USP. Essas pessoas que começaram a trabalhar dentro da construção de estruturação da universidade em si não tinham a permanência garantida em São Paulo, então foram se alocando dentro desse território que ainda hoje é um território da universidade até que virou um bairro. Tanto que a USP tinha uma relação mais estreita com essa periferia, tinha menos muros, tinha ruas que interligavam a USP a São Remo. Hoje é basicamente uma comunidade isolada, murada, com entradas com catraca, guaritas, ruas fechadas e isso ao longo do tempo foi piorando com o aumento do quadro populacional da São Remo. Aumentou o número de habitantes, de moradores da São Remo e não aumentou o desenvolvimento desse bairro que fica dentro da universidade. Como é um espaço que é responsabilidade da universidade, acabou se deixando algumas coisas de lado. Recentemente, cerca de 15-20 anos atrás, se inaugurou a primeira unidade básica de saúde nessa região, que foi uma conceção da universidade para a região. E só hoje existem programas e projetos que realmente fazem uma conexão entre a universidade e a São Remo, porque sempre foi um espaço que só tinha funcionários para zeladoria ou para construção ou pra limpeza da USP, nunca como atores principais de pesquisas e de iniciativas de saúde, por exemplo.
CEAF: Quais foram os impactos que vocês alcançaram e quais vocês ainda esperam atingir com a liderança de vocês?
Rafael Marques: Os impactos que criamos e o que esperávamos criar foram realmente os impactos dentro da São Remo com os projetos que tínhamos de disponibilizar itens proteção e de higienização; de criar um projeto que desse uma autonomia e uma dignidade aos moradores de escolher seus próprios alimentos, de ter alimentos frescos e não só alimentos que vinham dentro de uma cesta básica, mas alimentos frescos que geralmente que não são vinculados a uma necessidade de essencial de alimentação, mas que são essenciais para aumentar a variedade, para a pessoa entender que ela está sendo bem cuidada. E além dos objetivos que conseguimos alcançar, e vimos que teve um impacto bem grande principalmente por sermos só duas pessoas atuando nesse projeto, os impactos que tivermos nós tivemos dentro da Universidade foram muito reveladores para nós. Essa forma de pautar a vida da população negra não só na teoria, não só falando sobre as bases teóricas, mais de fato de construir e desenvolver projeto começo, meio e fim e dá certo, mostrou que estávamos bem atualizados e bem atuantes nessa área.
Isso nos abriu algumas portas dentro da universidade para participar de alguns eventos de atenção básica à saúde e o modelo do SUS; para participar da construção de disciplinas voltadas à população negra; para participar de pesquisas que não tinham um cunho racial mas que a partir do ponto que fomos convidados a participar ou a debater, essas pesquisas começaram a pensar mais na questão racial e ver quais eram as correlações que existiam entre doenças e a população negra, suas demandas e necessidades, o processo histórico, enfim. Acho que esse foi um dos impactos que, por mais que não sejam tão palpáveis, são dos impactos mais impactantes e surpreendentes que tivemos, de ver que além de o projeto alavancar tudo conseguimos distribuir física, também alavancou um debate ideológica ou algum avanço ideológico dentro da universidade de debater raça e racismo, história da população negra, de uma forma mais naturalizada dentro das disciplinas, dentro das pesquisas que já. E que isso possa se possa ser naturalizado de fato, que possa ser costume da universidade debater os temas que estão em alta na sociedade. não só os temas que universidades podem estudar.
Larissa Alexander: O Rafael já falou bastante sobre essa questão acadêmica, que a gente fez um caminho contrário, nós não pautamos isso de maneira acadêmica primeiro e depois tentou aplicar isso para a comunidade. Eu acho que fizemos o contrário, nós colocamos a mão na massa para depois pautar isso de maneira acadêmica. Esse impacto de trabalhar com a comunidade antes de levar isso para dentro da universidade, talvez seja o principal impacto, essa foi a principal realidade que transformamos. Nós transformamos uma ação em algo acadêmico.
CEAF: E quando o projeto nasce a partir da comunidade e não a partir da academia, sua recepção é diferente? Será que as comunidades sentem que de certa forma o projeto pertence mais a elas ou isso não faz nenhuma diferença?
Rafael Marques: Eu acho que quando o projeto vem e ele é composto por pessoas da periferia e quando as pessoas da periferia participam de todos os processos, acho que tem dois resultados. Com certeza o projeto ele vai ter o objetivo final que vai contemplar muito mais os interesses da população periférica, isso sem dúvida, porque as pessoas da periferia estão participando do projeto então elas vão conseguir pautar o que realmente importa para elas dentro desses projetos. Eu acho que por outro lado existe uma certa dificuldade também de ambos os lados de se comunicar, e essa comunicação é muito dificultada também pelo nível educacional, dos interesses de ambas as populações e também o processo histórico que se construiu para essas duas populações. As trajetórias que os professores universitários têm são muito diferentes das trajetórias que os líderes comunitários têm. Acho que tem esses dois lados, tem muita potência, porque realmente é construído por pessoas da periferia, mas existe um grande empecilho que é como você conversa com pessoas que você nunca conversou antes? Como que você debate ideias com pessoas que você nunca achou que ia debater? Para esse ponto, eu acho que tem uma solução muito clara que é de fato de incluir essas pessoas da periferia, pessoas negras e pessoas que estão à margem sociedade, na universidade.
Essas são as pessoas que vão conseguir traduzir os conhecimentos acadêmicos para os conhecimentos da periferia e os conhecimentos da periferia para os conhecimentos acadêmicos, que é um pouco do papel que eu e a Larissa estamos exercendo agora dentro da universidade. Nós somos tomados como tradutores dos dois ambientes porque de fato nós convivemos com uma certa estabilidade nos dois ambientes; nós estamos matriculados na universidade, e ao mesmo tempo, quando voltamos para casa também estamos inseridos dentro da nossa família, do nosso contexto de vida. Eu vejo isso como um aspecto de potência porque vemos que a política afirmativa de cotas raciais nas universidades públicas está aumentando a potencialidade e aplicabilidade das políticas e dos projetos que são criados dentro da universidade. Isso porque os estudantes negros, os estudantes cotistas, os estudantes de escola pública, estão conseguindo traduzir os conhecimentos que são gerados dentro da universidade para a periferia e estão conseguindo trazer esses conhecimentos da periferia para a universidade, coisa que antes não existia. Era mais fácil de fato fazer um muro né do que realmente tentar construir algo juntos.
Larissa Alexander: Eu acho que é isso mesmo, mas também nós esbarramos em alguns problemas de comunicação. Falando um pouco mais da nossa ação de fato, nós percebemos que como nós realmente nos aproximamos dessas pessoas e nos colocamos nessa posição de quem está entendendo e de que deixa essas pessoas terem a voz delas, às vezes não somos encarados como as pessoas da universidade. Então, não recebemos o mesmo respeito, digamos assim, das pessoas; uma adesão em relação ao que estamos falando ou até mesmo, ao que o Rafael disse no início, de que a própria academia não via como potencial esse projeto que idealizamos de mobilizar, arrecadar e direcionar esse dinheiro para a própria comunidade. Eu acho que tem isso, nós temos muito nesse papel de tradutor, mas também esbarramos muito nessa questão da credibilidade. Muito porque somos jovens, mas muito, para mim, porque somos jovens e negros. Então claro que são potencialidades, mas são potencialidades com uma certa restrição. E claro, eu não estou aqui falando que isso é um problema, mas nem sempre essa comunicação vai ser efetiva de fato, esse também é importante ela se levantar.
CEAF: Interessante, Larissa, e você acredita que pelo fato de você ser jovem, ser negra, a sua liderança impacta simbolicamente a outros jovens negros, principalmente dentro da universidade? Você acha que o fato de você está aí pode representar para as outras jovens uma espécie de porta de entrada, uma espécie de “eu também posso fazer isso”, “eu também deveria fazer isso, também tenho a oportunidade de fazer isso”?
Larissa Alexander: Eu acho que com certeza, porque eu faço parte da primeira turma de cotas da faculdade e, como o Rafael disse, encaramos uma certa crescente nos movimentos de representação e até mesmo com outros recortes não só raciais, mas racial e de gênero, racial e de minorias LGBT, enfim. E nesse sentido criar um projeto com a dimensão que o nosso projeto teve aqui na universidade, você acaba virando uma referência naquilo que você fala e naquilo que você faz. As pessoas, até os nossos calouros, os alunos que vieram depois, acabaram comprando a nossa ideia e levando e ajudando a agregar. Isso é muito impactante na nossa visão, do quanto você tirar do papel uma ideia, realmente colocar a mão na massa e fazer esse projeto acontecer, o quanto isso gera impacto de fato. O quanto as pessoas se sentem inspiradas a fazer o mesmo e a não se intimidarem a fazer o mesmo, porque é difícil você ver uma ação ser liderada por jovens negros, ainda mais uma ação que mobilizou alimentos, que é uma ação que foi assistencialista, de certa forma, mas que gerou e isso. Eu acho que esse impacto é muito visível e com certeza inspira e vai inspirar outras meninas negras como eu a fazer o mesmo, e fazer melhor e maior, com certeza.
CEAF: O que igualdade significa para vocês? Como vocês a descreveriam?
Larissa Alexander: Bom, a igualdade para mim vem muito da ideia do igual, de ser visto como igual, de ter as mesmas possibilidades, que também esbarra no que é equidade, enfim. Mas a igualdade para mim é você conseguir ser visto e fazer as coisas como iguais, que não é o caso para as pessoas negras. Bom eu viria justamente isso, a igualdade é a possibilidade de todas as coisas serem iguais, então as mesmas oportunidades de acesso, as mesmas possibilidades de emprego, de salários, de rendas, as mesmas ofertas, ter o mesmo acesso, acredito. Eu acho que essa é uma das principais definições de igualdade para mim, como eu poderia descrever concretamente isso: ter o mesmo direito e a mesma execução dos acessos, acesso à saúde, acesso à educação de maneira igual.
Rafael Marques: Acho que eu escreveria igualdade como algo que praticamente não existe na nossa sociedade, principalmente na sociedade brasileira. Talvez um pouco em países com ocupações muito homogêneas talvez exista. Mas considerando o Brasil, eu acredito que não existe, porque acredito que igualdade é um pouco do que a Larissa disse de que você só tem igualdade, só existe igualdade quando você tem a mesma oportunidade, o mesmo desenvolvimento, as mesmas portas, os mesmos investimentos, tudo o que você for fazer ter o mesmo tratamento. Mas nós vemos que na nossa sociedade o fato de você ser homem ou mulher já tem um uma grande diferença de oportunidades ou de possibilidades. Fato de você ser uma pessoa negra ou não negra, já existem outras muitas e essas oportunidades vão se sobrepondo. Então igualdade para mim seria uma quantidade que todos tivessem a mesma oportunidade de educação, a mesma oportunidade de formação ou pelo menos a mesma oportunidade, não digo que todos deveriam fazer a mesma universidade, que todos deveriam ter o mesmo emprego, todos deveriam ter o mesmo salário, mas é a oportunidade de ter o mesmo. Oportunidade de estudar, oportunidade de se dedicar aos estudos, oportunidade de trabalhar no que quer; o que de fato não existe para algumas populações, principalmente para a população negra. Não existe o poder de escolha, as oportunidades são reduzidas.
CEAF: E o que precisamos fazer para que a igualdade exista? O que precisamos fazer para chegar nessa sociedade equitativa e igualitária?
Rafael Marques: Eu acho que a melhor forma hoje de fazermos isso, considerando todo o quadro histórico de exclusão, de dificuldade de a população negra acessar os espaços que não é uma dificuldade inata das pessoas, mas uma dificuldade criada institucionalmente, seria reverter toda essa dificuldade e criar um ambiente de facilidade. Então o que se diz muito do Brasil e reparação histórica, não repare a sua histórica pela pelas últimas gerações mas por todas as gerações de pessoas que perderam a oportunidade de se desenvolver economicamente, socialmente, de ter uma vida feliz, de garantir uma vida adequada para os seus filhos, foram negados durante quase 300 anos de escravidão no Brasil. Então a forma que de colocar essas pessoas que são herdeiras e são filhas dessas pessoas que perderam oportunidade, é dando oportunidade de se desenvolver e não só dando, mas facilitando de fato que essas pessoas que possam estar nesses espaços. Sabemos que a partir do momento que a população negra no Brasil foi liberta, não existiu um pé de igualdade a partir daquela data de que todo mundo poderia acessar as escolas, as universidades, que todo mundo teria casa, que todo mundo teria um emprego, que todo mundo teria acesso à saúde, não. E até hoje, essas diferenças ainda são causadas pela cor da pele.
Então o que se deve fazer é considerar que o tanto de dificuldade que essa população tem deve ser revertida em projetos que facilitem que essas pessoas estejam nos espaços. O que vemos hoje é muito influenciado pelo movimento negro americano, e é esse movimento de inserir os jovens negros no mercado de trabalho por meio de trainees, por meio de capacitações online, de pré-capacitações. Então ao invés de você exigir que um funcionário, que o candidato à vaga, tenha a formação, você garante que ele tem essa confirmação, você dá esse a formação. Então esses programas dão um passinho adianto do que é dar oportunidade de facilitar com que essas pessoas estejam nos lugares que elas foram excluídas. E mais do que isso, pelo menos no Brasil, acredito que o que mais foi relevante nesses últimos anos foi a política afirmativa de cotas raciais, e também a política afirmativa de cotas para estudantes de escola pública que trouxeram uma população negra, uma população que sempre fez escola pública (e no Brasil faz a escola pública é porque teve a oportunidade de fazer uma escola particular, porque a escola pública não é uma escola que garante que você tenha boas oportunidades no mercado de trabalho), então realmente é uma população que não tem a possibilidade de pagar uma escola privada.
Então inserir esses indivíduos de escola pública e as pessoas negras dentro do ambiente acadêmico de formação, e que essas pessoas possam no futuro incentivar a sua família ou seus próprios comuns (outras pessoas negras), acredito que é o maior passo que o Brasil deu até então dentro dessa perspectiva de criar soluções para que a população ainda tenha um pouco mais de igualdade nessa sociedade. Mas sem dúvida ainda, está muito no começo e provavelmente essa política tem que aumentar ao longo dos anos e não diminuir. Se considerarmos gerações e gerações de pessoas escravizadas, 300 anos de pessoas que foram escravizados, não podemos cessar uma política em 10, 15, 20 anos. Temos que permanecer com essa política por pelo menos uns 100, 200 anos de políticas, e que isso seja normal até que exista dados, informações de que a população negra está realmente representada em todos os ambientes da população de forma igualitária.
Larissa Alexander: Só para complementar, eu acho que uma coisa bacana para destacarmos em relação ao que precisamos para viver em um mundo igualitário. Eu acho que existem algumas esferas: existe a esfera institucional; a esfera mais estrutural que seria a criação de políticas públicas, as cotas raciais em concursos públicos, em vagas para as universidades estaduais e federais, acho que esse é uma dos exemplos de como as políticas públicas podem atuar; a esfera pessoal, a esfera de pessoas que incluem igual, essas empresas que estão fazendo esses trainees, e não só empresas mas equipes grandiosas, enfim, toda essa ação de pessoas físicas na construção de uma igualdade como professores, que estão criando disciplinas que falem de saúde da população negra, de saúde da mulher, saúde da população LGBTIQ, enfim, de pessoas que são mais marginalizadas em alguma esfera. E também a execução essas políticas públicas devem ser bem executadas para evitar fraudes em cotas raciais, fraude nesses processos seletivos. Então eu acho que essa esfera de políticas públicas, de execução das políticas públicas e a ação das pessoas individualmente é uma tríade legal de como a igualdade pode ser atingida.
CEAF: E como é que a liderança de vocês contribui para chegarmos nesses objetivos, para conseguir alcançar essa sociedade?
Larissa Alexander: Acho que estamos um pouco nessa esfera individual de atuação, claro que por uma parte mais macro, de impactar mais pessoas. Mas ainda somos duas pessoas jovens dentro desse universo tentando fazer com que essas políticas acabem expandido. Então eu acho que nós, enquanto dois estudantes, ainda estamos nessa parte mais micro de tentar fazer com que uma disciplina seja instituída na faculdade ou de atuação dentro do coletivo negro. Acho que nosso projeto ainda é um projeto muito significativo, é algo que foi bem grande para a população, mas pensando nessa a igualdade acho que ainda estamos nessa parte mais individual, mais pessoal de atuação.
Rafael Marques: Acho que é isso. Acho que enquanto ainda não temos formas de reproduzir, de realmente criar coisas maiores e mais estruturais, nós começamos a tentar afetar, a impactar, as pessoas que estão ao nosso redor, e aí tentar aumentar cada vez mais essa propagação de que isso é um tema que tem que ser debatido, que vai ser debatido, que está sendo debatido, que é relevante; e no momento que seja mais oportuno, provavelmente em uma pós-graduação ou trabalhando já em uma empresa no hospital, ou mesmo na universidade, que a gente possa saber debater com uma resolução mas é direta, mais objetiva e não só ideológica, mas que realmente traga essas pessoas para dentro da universidade, garantindo que elas tenham possibilidades de ficar dentro da faculdade.
CEAF: O projeto de vocês sofreu um grande impacto da pandemia, então, como é a da COVID-19 influenciou a liderança de vocês, no projeto de vocês, como foi esse impacto?
Rafael Marques: Acredito que a COVID-19 aumentou o problema da população negra e periférica aqui em São Paulo e não só em São Paulo, mas o Brasil. Ela escancarou um problema que já existia dentro de outras doenças, mas quando consideramos a saúde vemos que existem algumas doenças que não tem tanta comoção, até porque são doenças que não têm uma mortalidade tão alta, mas são doenças que impactam diretamente a população e são muito impactantes. No Brasil tem muitas pessoas que têm doenças circulatórias, muitas pessoas que têm doenças respiratórias, muitos indivíduos com doenças relacionadas a comportamentos alimentares (obesidade, diabetes, hipertensão, entre outras), e considerando quais são os fatores que desencadeiam essas doenças, vemos que a população negra ela está muito mais exposta a esses fatores e que ela está muito mais vulnerável a estar doente e, eventualmente serem incapacitadas por algumas doenças ou até mesmo morrer por algumas doenças. Na COVID-19 não foi diferente.
A COVID-19 tem um mecanismo de propagação que é diretamente relacionada à exposição da pessoa ao vírus ou a pessoa que tem também a COVID-19, e a estratégia básica de prevenção é o distanciamento, é a higienização, é a proteção com máscara. Nós víamos que no começo da pandemia, mesmo tendo todas essas normas de prevenção para o COVID-19, os empregos das pessoas não pararam, o transporte público lotado não parou, os empregos que são empregos que tinham que se expor não pararam, tanto que aqui no Brasil a primeira pessoa a morrer com COVID-19 foi uma empregada doméstica que pegou ou contraiu a doença de sua patroa, que havia pego em uma viagem na Europa. Então vemos nitidamente a exposição da população negra, e que de fato, a partir deste caso, essa primeira pessoa que foi contaminada provavelmente foi atendida pelo sistema único de saúde (SUS), e muito provavelmente sua patroa foi atendida por um sistema privado, que pode ser um melhor atendimento. Isso tá muito atrelado a questão social e racial e isso bateu muito em nós quando começamos a pensar nos efeitos da pandemia e em como que essa pandemia iria afetar diretamente na população negra, nas famílias negras, não só no sentido do trabalho, no sentido de se expor, mas até dentro de casa na favela. Na favela São Remo as moradias são muito pequenas, são moradias que têm um cômodo ou dois cômodos, e que não tem como desenvolver distanciamento social dentro de espaços assim. Nós víamos que as pessoas transitavam muito nas ruas, e mesmo nas ruas não tem como você fazer um distanciamento adequado. E junto com toda desinformação e o desinteresse do poder público de proteger sua população, a maior parte das pessoas que morreram no Brasil são negras. Então vemos que é realmente um tema que precisa ser debatido e que ele precisa ser pautado principalmente pelas pessoas negras que são as pessoas que mais vão sofrer com essa temática [...] pelas pessoas que estão no poder.
CEAF: Larissa e Rafael, porque é que vocês são uma voz da igualdade?
Larissa Alexander: Acredito que eu seja uma voz da igualdade porque eu pauto essa questão de não sermos iguais, de termos diferenças, de estarmos em desvantagem social em relação às pessoas brancas e fazer disso um combustível para mudar essa realidade. Então eu acho que acabo virando uma voz dessa igualdade por isso, por fazer com que o reconhecimento dessa desigualdade acabe, por movimentar ações para que essa igualdade seja alcançada de alguma forma.
Rafael Marques: Acredito que eu seja uma voz da igualdade porque grande parte das minhas ideias e das minhas propostas não partem de uma visão de que tem que ser apenas um tipo de população, que tem que ser apenas outra. O que o pauto é que sempre exista uma representação e uma igualdade de oportunidades entre todos os tipos de pessoas e realidades existentes aqui no Brasil. Então o movimento negro brasileiro parte desse ponto de que a população negra não quer roubar o espaço, não quer ser dona do espaço, ela quer participar do espaço de uma forma democrática, de uma forma igualitária, mas a única coisa que ela não quer é ser impedida de estar ali. Então eu acho que é por isso que é preciso uma voz da igualdade.