“Eu tenho essa consciência de estar num espaço que é um espaço de luta, que é um desafio constante, mas desisti não, não posso, não tenho tempo para desistir. Eu quero respeitar as minhas fragilidades e buscar nos meus a possibilidade de colo, de poder chorar e de poder expor minhas fragilidades, para através disso também, respeitando a minha humanidade, poder me refazer”
– Klêicia Souza da Silva
Klêicia Souza da Silva, mulher negra, Baiana, mãe solo, cursa história na Universidade Estadual do Sudeste da Bahia. integrante do Conselho da Mulher de Vitória da Conquista e militante do coletivo Obá Elekó, Kleicia também foi candidata a vereadora na sua cidade. Nesta entrevista Kleicia conversa sobre a sua trajetória e sua experiência dentro do ambiente universitário.
CEAF: Você pode nos contar um pouco da sua trajetória de ativismo e militância? Quando foi que você percebeu que era uma ativista?
Klêicia Souza da Silva: Eu tenho 41 anos, sou uma mulher preta, criada por duas mulheres também, a minha avó e a minha mãe. A minha mãe ficou viúva aos 32 anos, com cinco filhos, então assim, mainha para poder trabalhar e garantir o sustento da casa, nós fomos criados pela minha avó. Eu tenho nessas duas mulheres uma referência de luta muito grande, são duas mulheres extremamente aguerridas. Eu casei aos 18 anos, fiquei 11 anos casada, tenho dois filhos dessa relação, que é o Vitor com 19 anos e o Eduardo com 16, minha mãe também ficou viúva, há dois anos. A gente passa por esse processo de ser mãe solo, que é muito difícil, complicado, dentro de uma sociedade que tem o racismo estrutural e por conta disso as várias dificuldades que nós mulheres pretas temos de acesso, fui ingressar numa faculdade, eu não diria tardiamente, mas quando eu tive realmente condições de não mais ficar protelando meus sonhos, então só pude entrar na faculdade depois que os meus filhos já estavam com uma certa independência, que já estavam mais grandinhos. Então, eu ainda estou em curso, eu tô no oitavo semestre de história na Universidade Estadual do Sudeste da Bahia, a UESB.
Eu entrei em 2016 e na universidade é que eu fui perceber o quanto que aquele espaço era para mim um não lugar, um ambiente de um racismo muito presente e que eu precisava de fato construir uma luta muito grande, por ser um dos poucos corpos negros dentro daquele espaço e eu vi outras pessoas lá dentro nessa luta muito grande e isso começou a me despertar pra que a gente pudesse se organizar para uma militância de resistência dentro daquele espaço. Fora isso, eu já tinha contato com vários movimentos. Eu sou educadora social e trabalho, sou funcionária pública aqui na minha cidade, trabalho na coordenação de igualdade racial e essa coordenação é uma pasta que assiste o povo de santo, a capoeira, juventude negra, comunidades quilombola; então, ter acesso a essas comunidades me fez entender uma realidade, uma história que eu não conhecia, apesar de ser uma mulher preta, então foi através desses acessos que eu comecei a me despertar para poder me emancipar e emancipar meus pares, é esse um pouquinho dessa trajetória.
CEAF: E como foi a sua chegada à universidade, como é que você se sentiu, quais foram os sentimentos que emergiram quando você chegou nesse espaço?
Klêicia Souza da Silva: Olha, eu fui a primeira pessoa da minha família a ingressar dentro de um espaço acadêmico e primeiro me senti extremamente feliz, porque cursar uma faculdade e uma faculdade pública era um sonho muito grande e parecia tão distante, tão inalcançável para mim. Eu passei toda minha vida no ensino público e a gente sabe o quanto que esses espaços são espaços sucateados, o quanto que é um lugar que a gente entra numa disputa com a educação privada e chega a ser desleal, muito desleal. Então eu não via a possibilidade de entrar. Quando eu fiz o vestibular para poder disputar uma vaga, eu já sabia que era o curso de história que eu queria fazer. Quando eu entrei dentro daquela universidade até o espaço físico para mim era surpresa, porque eu nunca tinha conhecido a universidade daqui de Vitória da Conquista. Era tudo muito novo, tudo muito mágico, ouvi as pessoas falando de um lugar de tanto conhecimento que eu pensava: nossa, será que eu que eu chego aí. Minha sala era uma turma grande de 45 colegas, hoje infelizmente somos só 14, a evasão, ela é real e é uma realidade.
Eu estou no curso noturno e a maioria é gente tem que equilibrar trabalho com os estudos, então assim, eu tô ali no noturno e para mim foi muito mágico, foi de uma alegria muito grande e para minha família também, minha mãe, nossa que coisa linda, minha filha na faculdade, eu sou a caçula, eu venho de uma família de cinco irmãos. Depois a gente vai perdendo o romantismo, a gente vai vendo como que é o dia a dia de estar dentro de um espaço que é como eu coloquei um não-lugar. Então você tem cobrança e exigências que você precisa dar conta. Foi um processo muito novo para mim, eu tinha encerrado o ensino médio em 1999 e fui entrar na faculdade em 2016. Então eu me senti a pessoa mais fora do rolê, porque tudo era novo para mim, mas com um nível de dedicação muito grande, por vezes eu entrava na sala e você ficar das 19 horas até às 22 horas como uma disciplina só e o nome de vários autores que eu nunca tinha escutado na vida e vários colegas que tinha metade da minha idade com a super disposição e tempo também, porque muitos deles os pais garantiam o seu sustento para poder só estudar e eu tendo que conciliar trabalho, família, porque mãe solo e eu tendo que dar conta da casa, dos filhos e faculdade.
Então foi por várias vezes que precisei interromper o sono na madrugada para poder fazer as atividades, por várias vezes dentro da sala de aula eu tinha que sair para ir no banheiro lavar o rosto porque o corpo já não estava aguentando mais o cansaço e o dia a dia é muito difícil, é um ambiente de um racismo que tá muito presente, a gente lida com várias violências, é um ambiente também extremamente machista, porque as mulheres, é um ambiente muito assédio, então assim para nós mulheres também é muito complicado, sobretudo a mulher preta que sofre com processo de objetificação do corpo, com a hiper sexualização do corpo , o que tá muito presente nesse espaço, embora seja um espaço de produção de conhecimento, a gente ainda tem que lidar com essas operações que são tão presentes, por isso o Obá Elekó tá dentro da universidade, para que seja um espaço de resistência, de denúncia, de resistência mesmo, mas é isso, foi um turbilhão de sentimentos. É muita coisa muita coisa boa, muita gratidão e muita felicidade, e depois que a gente perde o romantismo, muita resistência, muita luta, muita consciência de classe para a gente poder tá fazendo esse enfrentamento, de forma que a gente possa suavizar os impactos que são inevitáveis, porque é uma estrutura que a gente rompe num trabalho de formiguinha, dia a dia.
CEAF: E ao longo dessa trajetória quais foram os principais impactos que você atingiu e quais foram as principais dificuldades que você atravessou?
Klêicia Souza da Silva: Eu digo que as dificuldades elas ainda são as mesmas, de muito tempo, que é justamente a dificuldade de acesso que nós temos, às políticas públicas e a uma reparação social. Então a gente vive em uma luta, aquilombando forças, mas eu posso dizer que a gente conseguiu em 2016 criar um coletivo que é o coletivo feminista Obá Elekó, esse coletivo foi fundado por mim e também é presidida por mim, e a gente tem mulheres aguerrida dentro desse coletivo, um coletivo na perspectiva do feminismo interseccional, e a gente trabalha com essa ferramenta por acreditar que nós somos de fato plural. A nossa subjetividade, ela passa por um processo de vários marcadores sociais que nos compõem, então a gente por conta disso trabalha na perspectiva interseccional e o coletivo feminista Obá Elekó tem a sua identidade em uma origem iorubá, elekó significa sociedade das mulheres e obá é uma identidade ancestral de uma mulher muito aguerrida, é uma Iabá, uma mulher muito aguerrida que sempre defendeu as pautas das mulheres.
Foi através do coletivo Obá Elekó que a gente conseguiu acessar alguns espaços; hoje a gente atua dentro da unidade penal aqui da cidade, embora a gente não esteja em atividade por conta da pandemia, mas dentro da unidade penal, dentro das instituições de ensino, então a gente tá dentro das escolas municipais, estaduais, pública e privada aqui da cidade, trabalhando com o resgate da identidade negra, porque a gente entende que é extremamente importante para nossa emancipação, com essa palavra tão usada nos últimos dias, o empoderamento; e fora isso a gente está dentro da academia também. Como eu tinha dito anteriormente a universidade mostrou para mim que aquele é um espaço, um não lugar, então ele precisava ser um espaço de resistência para que não só eu quando mulher preta, mas com todas as outras discentes que estavam lá na resistência, pudesse ter um grupo de autocuidados, de acolhimento, de apoio, né? Então a gente hoje se reúne também dentro da universidade, na sala, no centro acadêmico do curso de ciências sociais.
A gente tá dentro desse espaço, com grupo de formação, de estudo e de acolhimento mesmo. Também essa luta de acessar e de estar buscando redes de resistência e aquilombamento, eu gosto muito dessa palavra, que o aquilombamento dá o sentido da coletividade. Nós temos uma casa hoje, que é o núcleo socialista, que fica em uma área periférica aqui na cidade, que é um bairro oriundo de um assentamento, o bairro conhecido como nova cidade, nós temos uma casa lá que recebe o nome de espaço fortalecer, nessa casa a gente afirma parcerias com algumas instituições aqui da cidade, no intuito de oferecer para a população periférica local, assistência jurídica e psicológica, e ser um ponto mesmo nesse momento de pandemia, onde a gente vê que escancara todas as desigualdades e a população tem fome, tem frio e tem pressa. Então a gente tem esse espaço aí, que é um núcleo socialista que conta com a contribuição e com a colaboração da sociedade, da comunidade e de instituições privadas para poder estar ajudando a comunidade local.
CEAF: Qual é a importância desse projeto, qual é a importância desse grupo?
Klêicia Souza da Silva: Então, eu penso que o grupo é importante porque a gente rompe com uma perspectiva de uma sociedade que é formada em um racismo estrutural. Então a gente tem uma dificuldade de acesso que é naturalizada, que chega a ser cultural por conta dessa estrutura. Trabalhar num coletivo é você trabalhar na perspectiva de fazer novos multiplicadores de emancipação, de empoderamento e de romper com essa estrutura que extremadamente violenta com a população negra. A gente sai de um processo aí, a gente, no do dia 13 de maio de 1888 nós tivemos abolição da escravatura e no dia 14 de maio de 1888 nós estávamos nus, descalços, sem moradia, sem escola, sem trabalho, sem perspectiva. Não tivemos por parte do estado nenhuma ação social. A nossa luta ainda é essa: por moradia, por trabalho, por educação, por segurança; e nós temos aí novos moldes de escravização. O coletivo é você unir habilidades e competências de modo que possa superar essas desigualdades e está provocando quem tem o poder, quem está dentro de espaços de poder e decisão, a pensar em reparação, na necessidade de reparação social para essa população que é a maioria em número, mas é a minoria em representatividade.
CEAF: Qual é o significado que tem a existência do coletivo e a sua liderança para esse território, o território da universidade?
Klêicia Souza da Silva: Então, eu entendo que a gente se descobre negro dentro dessa nossa sociedade, porque a gente nasce e recebe uma educação ainda nos termos colonizador, de nos silenciar. O coletivo Obá Elekó, ele traz para mim justamente isso, o reencontro consigo mesmo. Trabalhar com a nossa história, com a nossa origem, com a nossa ancestralidade, com a nossa identidade cultural, fazendo todo esse resgate que é tão necessário, desconstrói as mazelas que o racismo nos deixa. Desconstrói com essa herança colonial, de colonizar corações e mentes. O Obá Elekó é um espaço de informação e eu digo que de formação política, porque a nossa existência é política, nosso posicionamento é político. Então quando você se descobre negro, tá tudo tão assim para fora, tá tudo tão evidente, nossa vestimenta muda, nosso posicionamento muda, a forma de falar muda, porque você entende as suas pertenças, abraça as suas pertenças e afirma todas elas, em todo seu posicionamento. Então, o Obá Elekó, eu digo que ele cumpre uma tarefa libertária na vida das pessoas que constroem, das mulheres que constroem o Obá Elekó e das pessoas que nos permitem voz, que abre espaço para que a gente possa estar.
Dentro da universidade ele é de um acolhimento muito grande e para mim foi extremamente importante. O Obá Elekó conseguiu romper bolha, então a gente não tá só com um grupo de mulheres negras, por isso que nós trabalhamos com a perspectiva da interseccionalidade. Nós temos mulheres brancas, mulheres gordas, nós temos mulheres trans, mulheres bi, dentro desses espaços, então a gente precisa entender que a gente precisa romper a bolha, e a pauta antirracista é uma luta de negros e não negros, então a gente sabe que essa é a nossa urgência, é uma prioridade nossa, mas que o discurso de gênero, raça e classe tá muito presente e para mim o Obá Elekó abre um espaço de empoderamento muito grande, porque hoje nós ocupamos, tem várias mesas dentro da UESB, vários seminários, vários fóruns, e que eu estou dividindo mesa com mestres, doutores e pós-doutores e eu sou lá uma graduanda, falando de um lugar com muita propriedade, que é esse meu lugar de fala e parafraseando Isabel Reis, também meu lugar de dor, que é o lugar social que eu ocupo.
Então é de muito empoderamento a gente tá dentro desses espaços, não sendo um objeto de pesquisa, mas com uma vivência real e falando algo que toca nossas vidas e nos atravessa com muita opressão, é provocando reflexão dentro daquele espaço. Hoje a gente tá ali dentro da UESB com uma voz muito grande, não existe mais possibilidade de silenciamento, não existe mais possibilidade de mordaças, porque a gente conseguiu romper com isso, então assim, tem que nos engolir, tem que nos enxergar, nós estamos ali dentro ocupando o espaço que a gente tem consciência que é nosso por direito, mas provocando muito, inclusive muitas ações para poder mudar, para mudar também aquela estrutura. Hoje a gente tem muitos professores que apoiam a nossa luta, que está junto conosco, a própria reitoria consegue avaliar a sua dinâmica quando a gente traz as provocações e a necessidade de mudanças para mudar essa estrutura mesmo.
CEAF: E você acha que quem importante ocupar esses espaços, não seria melhor fugir desses espaços, se é um espaço de não lugar, o caminho de menos sofrimento não seria fugir?
Klêicia Souza da Silva: Não. Quem disse que esse é um não lugar é o racismo, que ainda se surpreende de ter um corpo negro dentro desses espaços. A gente sabe que o acesso à educação para a população negra ela chega bem depois, por isso que a representatividade é tão pequena em lugares tão importante como judiciário, executivo, legislativo e em áreas que são lidas com áreas de empoderamento, de trabalho; mas é o racismo que diz isto, que esse é um não lugar, mas esse lugar é nosso por direitos, a gente tem que acessar isso, a gente tem que romper com as mazelas que essa sociedade racista deixa para nós quando a gente tá ali dentro; para dar voz, para garantir o protagonismo, para garantir a representatividade. Então nós precisamos mesmo está ali, eu acredito que a educação é uma arma extremamente poderosa, transformadora, é um agente de revolução, então a gente precisa formar os nossos, a gente precisa permitir que o conhecimento chegue a todos. Não dá para mim falar de igualdade, sobretudo de equidade, se eu achar que eu devo fugir desse lugar porque a estrutura racista disse que é para mim um não lugar, não, esse é um lugar que eu devo ocupar sim, não só eu, como todos, por isso que a gente tem que tá lutando todos os dias e dando as mãos para poder garantir que este espaço seja ocupado pelo povo e pintado de preto.
CEAF: Teve algum momento que você pensou que não valia a pena estar aí?
Klêicia Souza da Silva: Não, eu tive momentos que eu precisei chorar, eu tive momentos que eu precisei de acolhimento, eu tive momentos que eu precisei de colo, teve momentos que eu precisei entender que essa resiliência que é colocada para mim também é violenta, eu tenho fragilidades, que eu quero assumir essas fragilidades para no outro dia me refazer, porque a gente não tem um minuto de descanso, então em todos os momentos eu tinha consciência do meu posicionamento e do meu lugar, da forma que eu teria que me posicionar. Então eu tenho essa consciência de estar num espaço que é um espaço de luta, que é um desafio constante, mas desisti não, não posso, não tenho tempo para desistir. Eu quero respeitar as minhas fragilidades e buscar nos meus a possibilidade de colo, de poder chorar e de poder expor minhas fragilidades, para através disso também, respeitando a minha humanidade, poder me refazer, porque é assim que que as coisas acontecem, não vai ser num passe de mágica, é no dia a dia, é construindo, mas ainda sem pensar em desistir, desistir jamais.
CEAF: E qual é o papel de uma pesquisadora negra ou de um pesquisador negro nesse espaço?
Klêicia Souza da Silva: Então, eu penso que é de uma relevância social muito grande, porque quando nós estamos dentro desses espaços e adquire o conhecimento e acesso, naturalmente a gente faz uma devolução. Eu conheço vários pesquisadores oriundos de comunidades quilombolas, que uma vez que adquire o conhecimento e o acesso, eles retornam para a comunidades para poder levar o que aprenderam e para poder emancipar os seus e permitir que outros também acessem esse espaço. Então assim, eu penso que a gente tem que estar dentro desses lugares, ocupando esses espaços na condição de pesquisadores e pesquisadoras, para poder fazer esse retorno mesmo, para poder fazer esse retorno para os nossos, e para poder permitir que os nossos também tenham essas condições de acesso. Aqui em Vitória da Conquista a gente tem 32 comunidades quilombolas, dessas 32 comunidades, 24 comunidades já são reconhecidas, as outras nessa conjuntura, não sei se a gente passa por esse processo, mais a academia, ela volta para as comunidades através dos quilombolas, através dos estudantes. Então eu penso que formar pesquisadores e pesquisadoras negras é uma forma de trazer o retorno para sua comunidade, combater o epistemicídio que como eu disse para você, vários autores e autoras negras cientistas eu fui descobrir dentro da universidade, né? Então assim, eu penso que a justamente isso, a gente poder trazer a visibilidade dos nossos, que que são tão silenciados por essa estrutura e que merecem tanto ocupar esses espaços, pela qualificação, pelo conhecimento que tem e pela consciência social que carregam.
CEAF: E para você, o que é equidade?
Klêicia Souza da Silva: Então, a equidade é você garantir, é que a gente fala muito de igualdade, mas assim, não dá para a gente alcançar a igualdade se não for pela equidade, então a equidade é a reparação social, é você garantir uma reparação social. Então a gente sabe que a gente tem dentro dessa nossa sociedade uma série de pessoas que gozam pelo privilégio da cor, gozam pelo privilégio de gênero e não dá para a gente pensar em igualdade se você primeiro não promover uma reparação social que promova a equidade. Então eu acho que através da equidade, é atingido a equidade que a gente luta por igualdade. Porque infelizmente nós não somos iguais, a gente vive em uma sociedade que se alimenta das desigualdades. Então para que a gente pensa em igualdade, a gente precisa promover a equidade através de reparação social.
CEAF: E porque que a gente pode lhe considerar como sendo uma voz da igualdade?
Klêicia Souza da Silva: Olha é, eu não sei como eu vou falar isso assim, mas eu penso que a consideração parte é da consciência, da consciência do meu lugar, de onde eu venho pedir e que meus passos vêm de longe e que tem muitos como eu que precisa se emancipar, que precisa ocupar esse espaço, que precisa existir e reexistir. Então eu penso que a essa consideração vem justamente da consciência do meu lugar socia, que o lugar que eu ocupo é o lugar de muitos, e que a gente precisa permitir que as pessoas possam acessar outros espaços. Eu gozo de muitos privilégios, eu gozo de muitos privilégios e eu não quero que seja privilégios, eu quero que seja direitos e condições iguais de acesso para todos, que tenha as mesmas condições, que vem do mesmo lugar que eu, mas não tem as mesmas condições de acesso, então assim, é por isso que a gente tem que ser se colocar como, eu não diria nem se colocar como uma liderança, porque eu acho que quem está na liderança está a serviço, então eu não sou, as pessoas nos veem em um lugar que também é um lugar muito cruel, a militância é muito cruel, a militância não nos dá um fôlego e a gente precisa dar resposta todos os dias, mas nem sempre a gente tem respostas, então a militância também nos coloca em pódio e nos coloca em prisões, em lugares que a gente não ocupa, essa resiliência é muito violenta, esse sentido de resiliência é muito violento para nós. Então eu penso que considerar-se uma líder é ter consciência da minha humanidade e também humanizar o outro.
CEAF: Quando você faça aquilombando, o que você quer dizer?
Klêicia Souza da Silva: Então, aquilombar é você dar as mãos. Existe uma existe uma filosofia africana que é o ubuntu que diz: “eu sou porque nós somos”. Aquilombar forças é você saber de que eu não estou bem se na minha mesa tem comida, mas do meu vizinho não. Eu não posso estar bem se eu tiver olhando só para as minhas necessidades. A gente precisa olhar para a necessidade do outro e entender que ela é também uma responsabilidade nossa. Então aquilombar forças é a ideia da coletividade, aquilombar forças é uma ideia socialista de você dividir o que tem, e saber que você tá bem se o outro que tá do seu lado também estiver. Então aqui em casa eu sempre falei com os meninos: quando eu tinha que sair para trabalhar e deixar os meninos sozinhos aqui em casa e às vezes a dificuldade de garantir o sustento, eu sempre dizia, quando tem muito a gente come muito e quando tem pouco a gente come pouco, mas todo mundo come, então é sempre você tá pensando no outro. Então eu acho que aquilombar forças é isso. O quilombo é um espaço de resistência, quando dentro desse processo escravocrata, a gente tem dentro do quilombo um resgate de uma identidade, de uma cultura e de um povo que pode estar ali dentro para poder sonhar em liberdade, então o quilombo, ele é um espaço de resistência e eu acho que a dizer aquilombar forças é você unir forças para resistir, é dar as mãos.