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“O papel dos pesquisadores negros não é apenas produzir conhecimento, se for para produzir conhecimento científico, para publicar livro, congressos, eventos, nós vamos nos igualar aos tradicionais pesquisadores brancos; não é só produzir conhecimento. É produzir conhecimento, sabe aquele negócio que eu sempre ouvi nas universidades, ensino, pesquisa, extensão, só que para os pesquisadores negros não é só isso, é ensino que tem alcance lá onde o menino, a menina está estudando os primeiros anos de escolarização, é o menino que tem que optar entre o trabalho, trabalhar ou estudar ou entre comer ou estudar; então o papel dos pesquisadores negros não deve se limitar a esse tipo ideal de ciência branca, a ciência, o conhecimento dos pesquisadores negros deve buscar um horizonte, qualidade, cada vez mais de transformação dos territórios, territórios que são fixos e fluxos, sempre em movimento”

- Reinaldo de Oliveira

Reinaldo de Oliveira é professor universitário na Bahia. Doutor em ciências sociais, ao longo dos anos, como professor nas áreas de sociologia e antropologia, ele se dedicou a estudar as relações entre a vida urbana, os territórios, as globalizações e as relações étnico-raciais, pensando principalmente a relação entre a diáspora e as cidades.  Reinaldo, nesta entrevista, conversa sobre a sua trajetória, sobre a importância da universidade e o papel dos pesquisadores negros dentro deste espaço. 

CEAF: Professor, o senhor pode nos contar um pouco da sua trajetória, como é que o senhor se tornou um ativista, um militante, um líder na luta pela igualdade racial?

Reinaldo de Oliveira: Ultimamente essa história tem sempre no dia a dia vindo à minha mente. Eu sou da geração dos anos 90, aquela que vivenciou os primeiros anos e décadas da Constituição de 1988 e o processo de reorganização do movimento social negro no Brasil. Em 1993 eu entrei no ensino superior, por intermédio de ativistas negros. Naquele ano eu tinha deixado o serviço, eu trabalhei durante cinco anos num escritório regional do PT, eu comecei como office-boy e saí de lá na época como auxiliar de CPD e fui trabalhar em uma ONG, na fase São Paulo: Federação de órgãos para assistência social e Educacional. Um dos diretores dela era o Flávio Jorge, um importante militante do movimento negro de São Paulo e do Brasil. Nessas duas instituições, no PT e na fase, eu tive contato com pessoas que eram jornalistas, economistas, cientistas políticos, advogados. Os meus pares na época, os Office-boys, os meus pares que moravam na periferia, eles eram todos funcionários de baixa remuneração e de pouco status social. E eu procurava conversar com todo mundo, principalmente com essas pessoas que no meu local de reposição da força de trabalho não detinham uma profissão de maior remuneração, de maior complexidade, conhecimento. Foram esses dois mundos que me fez adentrar o ensino superior. Eu começo em 1993, um ano anterior a disputa entre Lula e FHC.

Então eu vivi um momento de muita efervescência social e política, tanto dos movimentos sociais como dos partidos políticos de esquerda e do movimento social negro em São Paulo. Então eu militei em São Paulo. Nessa época tinha, eu participei de um grupo de estudantes do Instituto do Negro Padre Batista também tinha um grupo de estudantes na USP e na Universidade que eu me formei, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ali tinha um berço de estudantes negros muito importantes, desse berço saíram muitos pesquisadores que estão em universidades do país, no Norte, no Nordeste, no Sul ou no Sudeste. Digamos que cinco, seis estudantes que fizeram a universidade nos anos 90, do mestrado e doutorado estão em importantes universidades do Brasil e são importantes lideranças na área de estudos das relações étnico-raciais tanto de humanidades, ciências biológicas exatas e tecnológicas, né? Então na PUC eu tive uma escola de formação de pesquisadores negros, mesmo sendo um espaço muito fechado, porque é um local de elite.

CEAF: Durante essa trajetória, quais foram os momentos mais importantes e quais foram as principais dificuldades que o senhor enfrentou?

Reinaldo de Oliveira: A dificuldade era dia a dia, viu: Uma era a distância, o dinheiro porque era uma universidade particular, não era uma universidade pública, porém como eu lhe disse, muitos estudantes negros que estudaram ali, alguns continuam estudando, adentrando por causa de um histórico, é uma instituição particular, mas ela tem esse particular mista, comunitária. Então ela tem obrigação de oferecer bolsas, senão de 100%, ao menos de 50% para os estudantes negros e também sou de uma época no final, do início do governo do FHC que foi a financiamento estudantil. Eu peguei uma parte do financiamento estudantil, financiamento interno da universidade. Então as principais dificuldades é: primeiro lugar, a questão econômica, se manter, se manter porque desde o início ao final eu sai com dívidas, eu nunca consegui pagar essa dívida, caducou. Eu nunca consegui pagar essa dívida, mas graças a Deus eu terminei a graduação, eu fiquei devendo a graduação, e mestrado doutorado graças a Deus foi com bolsa, é capes, e depois eu comento que também foi a bolsa do doutorado foi o programa internacional de bolsa da fundação Ford. Numa instituição como a PUC e pensando também, se fosse uma instituição pública, o principal problema é a questão financeira e depois vem questões subjetivas que não são materiais. Eu fui o único filho da família a entrar no ensino superior.

E aí se estendeu um pouquinho mais né, da família do meu pai, da minha mãe, né? Dos primos próximos, eu fui no universo de 100, 200 pessoas, eu fui o primeiro a concluir o ensino superior. Então num bairro de maioria de baixa renda com grande participação de negros, foram poucos jovens que saíram das periferias e se tornaram mestres e doutores, então é uma geração no final do século XX do início XXI que as oportunidades do ensino superior foram conquistadas e abertas, não porque o estado deu direito, ou proporcionou isso, mas sim porque as políticas, elas foram enfrentadas no dia a dia, nas ruas, nos debates, na proposição por intermédio do Movimento social negro, mulheres negras, estudantes negros e movimento social sindicalistas. Então, é isso um pouco o contexto, e a principal questão é financeira, mas, não dá para pensar no financeiro sem tocar no racismo. Então, o racismo brasileiro, ele, se você não faz uma problematização de como que é a história, as pessoas vão acreditar que a questão dos negros do Brasil é apenas uma questão econômica e não é, é uma questão racial e social; os dois quadros caminham juntos.

CEAF: E como é que o racismo opera nessa lógica da universidade, do caminho universitário? Quais são as questões que claramente a gente vê que é o racismo que está operando ali, para além do financeiro?

Reinaldo de Oliveira: Bem, durante a formação, esse racismo que é histórico e contemporâneo, ele não proporcionou que o meu âmbito familiar conquistasse um pouco, um pouquinho de desenvolvimento para que os mais novos pudessem comer melhor, pudessem ter mais chances, pudessem disputar espaços de concorrência, quase no mesmo patamar que os brancos, que poderia facilitar o aprendizado, o acesso a uma língua estrangeira, o aprendizado. Pois é aquela história que a gente vê no dia a dia, quando você entra no ensino superior, você entra no ensino superior, só que, quando no dia a dia, quando você está aprendendo e quando você está concluindo, você termina, mas você não termina junto com os brancos, eles terminam, mas lá na frente, então o racismo age dessa forma, né? Então as desigualdades raciais elas agem dessa forma, por exemplo, no ensino superior, no mercado de trabalho eu tive várias situações, eu trabalhei em uma universidade estadual pública, no estado do Paraná. E aí, o primeiro dia que eu fiz, deixei minha documentação, falei com a secretária e o estado do Paraná é um estado com participação negra em torno de 15% no Estado, né.

E eu trabalhava na Estadual do Oeste, no campus que ficava em Foz do Iguaçu, em uma região de muita migração de gaúchos, catarinenses, é uma região de maioria branca e depois que entreguei minha documentação, passou uns dois, três meses, eu fui na secretaria, como era de praxe, como todo professor fazia e a secretária me confundiu com aluno. Foi estranho porque eu ia lá toda vez, né? Eu não sei se, eu até hoje tento acreditar que não foi o racismo e foi o ato falho dela, mas pelo contexto acho que foi, é porque eu era o único professor negro e na cidade que eu morava, morava próximo de mais ou menos 30, 40 Km e uma cidade de trinta mil habitantes, também de maioria branca. Teve um dia que eu fui tomar uma cerveja com o marido de uma professora e nós fomos tomar cerveja, aí o proprietário falou assim: e aí “neguinho” o que é que você vai querer, ele me tratou dessa forma. E essa pessoa que foi comigo tomar cerveja, ele era da cidade, em uma outra oportunidade ele falou para esse proprietário do bar: puxa, você deu o maior fora, o rapaz é professor da faculdade aqui na cidade e aí da segunda vez eu fui lá sozinho comprar uma cerveja para beber em casa e ele falou assim: e aí doutorzinho. Então as coisas são assim, né, então no momento que eu não tinha sido apresentado eu era negrinho, no momento que eu fui apresentado eu veria doutorzinho. Então, independente do meu grado acadêmico, as pessoas num primeiro momento tratam você, não que neguinho seja pejorativo, porque não me conhecem, assim como eu não o chamo de branquinho ou brancão, ele não me conhece, né? Então o tratamento seria: o senhor, como eu sou o cliente, eu sou consumidor, o tratamento seria: o senhor, você; né? E não foi dessa forma, mas também tenho muitas e muitas situações de racismo, discriminação. 

CEAF: Qual é o significado da sua liderança, da sua trajetória?

Reinaldo de Oliveira: É assim, é um processo inacabado, mas assim, esse significado também está relacionado com aquilo que eu fui fazer no mestrado e doutorado. Então, eu continuo desde o mestrado, desde a graduação até hoje. Eu me mantive no mesmo percurso intelectual teórico-metodológico que é: investigar a cidade em conexão às relações étnico-raciais. Ou seja, a população negra nos espaços das cidades do Brasil. Então qual o significado: retornar a cidade um cruzamento de vias e espaços de liberdade, independente da minha cor, né? Então o significado da minha trajetória, ela não está acabada, ela está sempre em construção e quando eu vejo mais pessoas negras no espaço superior no espaço de sucesso, pessoas de baixa renda proletariados, né.  Independente do seu grau intelectual, mas lugares de heranças, eu vejo que esse meu significado de liderança é, ele tem proporcionado desenvolvimento de pessoas, têm também servido para a formação de recursos humanos nesse espaço de pensar a cidade para todos, de pensar a cidade para diversidade, tanto a questão étnico-racial, a população LGBTIQ, o imigrante, o refugiado, todos aqueles que não estão nessa norma, nesse quadrado do ser branco ou de ser branco, masculino e hétero, e de dinheiro. Então, qual é o significado da minha liderança, então este significado está amparado nos meus antepassados.

Eu vejo que nesse momento, século XXI, a minha geração recebeu muito das gerações anteriores e esse muito precisa ser passado, não pode ficar comigo, não pode ficar com você. Então, a liderança, eu acredito que será cada vez mais, multiplicar oportunidade de desenvolvimento para a geração, por exemplo, para a geração do meu filho; meu filho tem 11 anos, então será a geração do meu filho que vai receber de nós, a geração desse século XXI que irão receber mais os benefícios, né? Porque aqui no Brasil veja só, a política de cotas, ela começou com o debate no final do século 20 e a implementação começou nos anos 2000, então nós temos quase, digamos, duas décadas, eu já tenho quase duas gerações de estudantes negros, indígenas de baixa renda que se formaram com a política de cotas nas universidades brasileiras, essa geração do meu filho, né? Essa geração mais nova, ela que vai fazer a grande transformação desse século XXI. Isso, eu estou imaginando quando chegarmos, quando eles chegarem por exemplo, quando eles chegarem em 2050, 2070, 2080, né? Que esse quadro, essa grande distância étnico-racial, ela tenha cada vez mais diminuído, chegado em um patamar onde as desigualdades, as oportunidades não sejam tão gritantes como são hoje. Esse é o significado que espero que essa geração consiga conquistar.

CEAF: Ampliando um pouco mais, pensando na sua liderança e no contexto no qual o senhor está inserido, qual seria a importância desse processo, qual seria a importância da sua liderança para o território para o contexto? pode pensar em contexto tanto geográfico como político-social, universitário.

Reinaldo de Oliveira: Eu moro na Bahia exatamente há 11 anos, e nos 30 e poucos anos que moramos em São Paulo, no meu âmbito familiar, no meu círculo de amigos, eu não tive contato com ninguém que teve curso superior concluído. Teve lá um vizinho que estava fazendo escola técnica, mas ele era branco, né; as dificuldades dele não era as mesmas dificuldades minha, e dos meninos negros. Então eu fui percebendo que quando eu comecei a fazer o curso superior e quando eu concluí, que a minha relação com o lugar mudou, eu me percebi com mais responsabilidades; então, nesse território da periferia, de maioria negra, proletariado, de mulheres chefes de família de baixa escolaridade; eu me percebi como uma grande responsabilidade, de falar com jovens quanto ao tráfico, quanto ao genocídio, quanto a importância de continuar os estudos, de concluir, de buscar uma inserção no mercado de trabalho ou continuar os estudos, seja ele técnico, seja ele superior, seja ele artístico e cultural. Então, quando eu comecei a mudar, a transformar meu papel de liderança, o território teve um grande efeito, na minha condição, porque eu sou parte desse território, eu não posso esquecer do meu lugar.

Então essa relação território – indivíduo, território e em movimento social é assim, elas se embrincaram todo momento da minha história. É como se eu tivesse uma dívida e essa dívida tem que ser paga, eu tenho que atuar neste território. Como eu me mudei, esse território não é fixo, hoje é aqui por exemplo. eu estou numa cidade que tem aproximadamente 110.000 habitantes, Santo Antônio de Jesus, uma região que fica no Recôncavo baiano e o recôncavo é de maioria negra. Aqui aonde eu resido, é  uma cidade que tem em torno de 75% de população negra, então  é uma cidade negra, só que o poder político e econômico infelizmente não estão nas mãos dos negros, esse território, ele tem essa força negra na cultura, nas artes, na religião; e a grande dificuldade é tornar esse território de mais potência, de maior potencialidade, é a questão intelectual, é a questão do conhecimento, é conhecimento e os movimentos sociais, tanto negros, de mulheres, de artes, de cultura.

Então é um território que, assim como as periferias do Brasil precisam de lideranças, precisam de um olhar de homens e mulheres que busquem trabalhar esse conhecimento, né? Tanto trabalho de pesquisa, de ensino, mas também o trabalho social para buscar promover novas lideranças. Eu acredito que as transformações desses territórios só foram possíveis a partir do momento que os movimentos sociais, que as lideranças sociais começaram a atuar diretamente no chão desse território, não adianta a formação de lideranças sociais negras, se essas lideranças não retornam para suas bases, não retornam para os seus territórios; isso no final você não paga dívida, no final você acaba fazendo o território um local destituído de poder, de forças, ele só serve para formar lideranças, mas não serve para reprodução, é um território que vai estar sempre perdendo; perdendo os seus bens mais valiosos, que é a sua população, a sua população é um quadro social, cultural e político, então eu vejo que essas questões do território, na minha história tem uma história muito interessante, porque eu busquei em todos os momentos não me distanciar das minhas origens.

CEAF: E qual seria o papel das pesquisadoras, dos pesquisadores negros, dos estudantes negros, e das universidades na construção de equidade para os territórios?

Reinaldo de Oliveira: Não é apenas produzir conhecimento, se for para produzir conhecimento científico, para publicar livro, congressos, eventos, nós vamos nos igualar aos tradicionais pesquisadores brancos; não é só produzir conhecimento. É produzir conhecimento, sabe aquele negócio que eu sempre ouvi nas universidades, ensino, pesquisa, extensão, só que para os pesquisadores negros não é só isso, é ensino que tem alcance lá onde o menino, a menina está estudando os primeiros anos de escolarização, é o menino que tem que optar entre o trabalho, trabalhar ou estudar ou entre comer ou estudar; então o papel dos pesquisadores negros não deve se limitar a esse tipo ideal de ciência branca, a ciência, o conhecimento dos pesquisadores negros deve buscar um horizonte, qualidade, cada vez mais de transformação dos territórios, territórios que são fixos e fluxos, sempre em movimento.

Então essa pergunta é ao mesmo tempo, ela é teórica e prática, né? É então a prática é teórica, você nunca vai pensar que ela vai digamos, ela é fechada ou utópica, mas é uma ideologia de um pensamento que ela é inacabada, que ela está em diálogo e na realidade é quando eu na condição de pesquisador, de escritor, quando eu estou escrevendo texto, eu não estou escrevendo apenas um texto pensando nos dados estatísticos ou na palavra daquela pessoa que me concedeu uma entrevista, mas eu tô escrevendo um texto pensando que sentido ele terá, qual impacto ele terá nos jovens que estão na universidade, nos jovens que estão na periferia, que sentido esse conhecimento terá no debate, no diálogo, nos atores que fazem o debate sobre políticas públicas de igualdade, de desigualdade, de equidade e de políticas interseccionais. Eu acho que o pesquisador, acho não né, eu compartilho com pares de pesquisadores de pensamentos, que vê na ciência, o pensamento negro como o pensamento diaspórico né, o pensamento diaspórico negro é sempre um ajudar o outro né, esse pensamento da diáspora, que está no mundo de transformação. Por que de transformação? Porque é uma diáspora, seja na América Latina, seja na América do Sul, América do Norte, seja na América Central ou no mundo; a experiência de esse horror, de esse desserviço, a desumanização de sociedades africanas, dessa diáspora, nós fazemos seres humanos que buscam cada vez mais, esse inacabamento, esse processo que nos encontra, que nos faz buscar o diálogo, o encontro, as vozes que tem de vista esse papel do cientista negro.

CEAF: Professor, para o senhor, o que significa equidade e igualdade?

Reinaldo de Oliveira: São termos diferentes, né? Então a igualdade na teoria, pensando a constituição de um país ou pensando a constituição de direitos humanos, que todo cidadão tem direito a habitação, à saúde, à moradia digna né? Então isso é um lema que todo o ser humano busca, mas na prática é diferente, então a igualdade só pode ser realmente real quando todos vivem as mesmas oportunidades, quando todos, independente do gênero, da classe social, da cor da pele, da opção sexual, do lugar, quando todos têm as mesmas oportunidades; e a igualdade no Brasil ela ficou sempre no papel, que na realidade a igualdade no dia a dia, a hierarquia é formada em primeiro lugar em cima o homem branco, posteriormente a mulher branca, posteriormente o homem negro e por último as mulheres negras, então não dá para falar em uma sociedade onde a colonização e o escravismos  foram; interferiram nesse território por quase quatro séculos, não dá para falar em igualdades sem pontuar essa opressão histórica né? Que é classe social, gênero, etnia raça e outros marcadores de desigualdade. Agora, a equidade é diferente da igualdade, mesmo na igualdade ou numa sociedade que busca através de políticas sociais que supere esse tradicional quadro socioeconômico, é fazer com que as políticas elas em processo de intersecção, ela atinja essa equidade. A equidade eu acredito que seja mesmo no processo de igualdade existem diferenças e essas diferenças, as políticas de igualdade não conseguem responder, elas não alcançam essa igualdade. Por isso que equidade era, é essencial tanto do ponto de vista teórico como prático, né? Nós somos uma sociedade que tem poucas, pouquíssima experiência em equidade, porque a equidade ela é muito, muito recente, em razão de uma política de igualdade que sempre beneficiou os mais claros, o hétero, a mulher mais clara, o território de mais desenvolvimento tecnológico, informacional, então a equidade, ela merece, deve merecer o outro tratamento em razão de um quadro de profunda desigualdade, e que mesmo nesse século 21 essas políticas de igualdade não são suficientes para lidar com esse quadro real da equidade, das diferenças.

CEAF: Por que é que a gente pode considerar o senhor uma voz de equidade?

Reinaldo de Oliveira: Então, o que há de equidade na minha história, eu acredito que eu reúno e faço parte dessa diáspora, dessa população negra que em mais de 500 anos edificou a sociedade brasileira durante 388 anos de trabalho escravizados. E no pós 1888, as gerações do meu pai, dos meus avós, eles são responsáveis por eu estar aqui, né? Então eu sou a primeira pessoa de 500 anos ou dos últimos 130 anos pós abolição que alcançou esse papel de liderança, pela liderança do movimento social, mas também do conhecimento científico, né, no ensino superior. Então, eu reúno uma história dos meus antepassados homens, mulheres, rapaz, você tinha que ver a mão do meu pai, sabe, aquela mão de lixa, era mão do meu pai, a mão e os pés, ele cortava os calos com a faca. Você tinha que ver rapaz, cortava os cabelos com a faca.

E a minha mão não chega a fechar as mãos do meu pai, se as mãos do meu pai eram grossas, imagino dos homens, mulheres negras escravizadas, as feridas que foram se fechando no trabalho, na dor né; na fuga, da formação dos quilombos. Então essa equidade é o que eu represento historicamente, contemporaneamente é essa força negra, indígena, latino-americana né; que tem que ver com o seu conhecimento, com a sua ciência, que não é uma ciência branca. Fazer com que essa geração desse século XXI, alcance tudo que eles possam, o que os passados trabalharam. Mas só, quem edificou o Brasil foram nossos antepassados e o que é o mais diferente que eu quero, que é o mais diferente que nós queremos, que essa equidade do passado e do presente tenha direitos plenos. Depois eu vou mandar para você um pouco da minha geração. Meu filho toca um instrumento musical, o piano. Olha, eu não sei tocar um pandeiro. Eu gosto de samba, mas eu não sei tocar nenhum instrumento, então, essa geração desse século XXI, espero que vá muito, muito longe, que tenha oportunidade de aceso às línguas estrangeiras, a instrumentos musicais, que eles sejam cientistas das ciências exatas, biológicas, medicas, doutores, então, eu concluo dizendo que: eu me considero uma equidade, uma diferença, que eu trago na minha história, no meu corpo, essa diáspora, esse Brasil que foi construído por negros e indígenas.

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