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“Acho que essa nossa conduta em relação à política nos ajuda a desenvolver essa perspectiva de que todo mundo é importante, de que todo mundo tem um papel nessa construção, não tem tarefa que seja melhor ou pior, eu não estou à frente nem atrás de ninguém, eu estou ao lado e eu cobro muito das pessoas que estejam junto conosco nessa construção. Não basta cobrar, não basta votar, a gente também tem que desenvolver essa capacidade criativa e gestora em relação aos nossos problemas”

– Karen Santos

Karen Santos, negra, militante, professora de educação física, foi a vereadora mais votada de Porto Alegre, Capital do Rio Grande do Sul. Entre as principais bandeiras de Karen, está o combate à discriminação racial, e a defesa da igualdade entre homens e mulheres e dos direitos da população e a luta por uma construção política coletiva.

CEAF: Você poderia nos contar um pouco da sua trajetória como líder? Quais foram as suas motivações para tornar-se uma militante? 

Karen Santos: Eu comecei a fazer política de forma organizada num coletivo, no Movimento Estudantil de Educação Física, em 2007, quando entrei na universidade, na URGS.  Este é um curso que te consome dois períodos do teu dia, períodos de trabalho, e eu não consegui acompanhar o curso no seu ciclo tradicional justamente porque eu era uma estudante trabalhadora. Eu trabalhei dois anos no IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ali trabalhei com o PENAD Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios e esse trabalho como pesquisadora para mim foi bem importante na minha construção de entendimento da realidade porto-alegrense e riograndense.  Depois, ao retornar à universidade, essa experiência me levou a decidir por fazer parte do movimento estudantil, na época, da Educação Física. Em 2012 eu fiz parte do  Diretório Central de Estudantes da URGS. Nesse ano, foi a avaliação de cinco anos das políticas de ações afirmativas, nós organizamos uma ocupação na URGS, que se transformou numa vigília porque a gente não conseguiu ter força para entrar dentro da reitoria, mas a gente conseguiu permanecer na universidade pautando a divisão do acesos às cotas, não só mais em cotas sociais e raciais, mas que houvessem duas distinções, porque são problemas distintos de ingresso, para o problema do racismo,  as cotas raciais e o problema do desmanche de educação, da segregação econômica as cotas sociais. 

Nós saímos dessa ocupação e criamos o Coletivo Negração, o primeiro coletivo de estudantes negros da URGS. O Coletivo Negração tem muita interferência na minha construção, justamente porque me colocou para além daquele espectro dos problemas da educação física. O nosso Diretório Acadêmico de Educação Física, assim como o MEF (Movimento Nacional dos Estudantes de Educação Física), é um movimento muito articulado desde a redemocratização, é uma escola de formação política. Então, essa é a minha escola de formação, a educação física e depois o coletivo Negração, que me também me levou a retomar essas questões da raça, do gênero, que normalmente dentro da discussão mais tradicional da esquerda fica secundarizada, dentro da caixinha das opressões. No Negração a gente começa a questionar tudo isso. Coisas que já me incomodavam antes, enquanto militante de educação física, que não achava que as nossas questões deveriam estar fragmentadas do debate mais geral da situação política. Isso se deve ao fato de eu ser uma pessoa negra, sempre tive esse entendimento de ser uma pessoa negra. Meu pai é bancário, minha mãe é secretária de escola. Me criei dentro de terreiro, minha mãe era de matriz africana, de um terreiro Xexexá da mãe Ana, da zona sul de Porto Alegre. Então me criei dentro também dos fundamentos da matriz africana. Me criei também dentro de um clube negro de Porto Alegre, que era o Clube Floresta Aurora, um dos primeiros clubes negros de Porto Alegre, acho que o primeiro clube negro de Porto Alegre no Rio Grande do Sul criado por ex-escravizados, justamente na época em que os negros não podiam frequentar as mesmas festas dos brancos.

Essas memórias, essa militância, anterior ao movimento estudantil, me vem depois do coletivo Negração e já estando vereadora, porque eu sou muito questionada sobre “Quais são os meus os meus pressupostos?”, “Quais são os lugares de onde eu vim?”, “Quais são os espaços que me permitem falar as coisas que eu falo?”. Então eu sempre coloco o movimento estudantil, o movimento estudantil da educação física, o Coletivo Negração. E fazendo esse exercício de reflexão, comecei a perceber que é muito anterior. Vem de família também, por essa formação dentro do clube negro, pela formação dentro do terreiro, pela escola de capoeira do Mestre Farol.. Então tu começa a ver que esses assuntos vêm de longe, que isso tudo me ajuda a compor e dar espaço, dar visibilidade para essas narrativas de que a Karen não é um fenômeno do momento, é uma construção que remete a três quatro gerações anteriores. E por fim, a frente quilombola que é um espaço que eu conheci nessa ocupação de 2012, a frente quilombola organiza os quilombos aqui em Porto Alegre, a capital do Brasil com maior quantidade de quilombos urbanos. Ali que eu começo a perceber esse aspecto da luta que é além da universidade, além da luta estudantil e sindical que é a luta dos povos. Desde então eu não larguei mais a frente quilombola. 

CEAF: E como foi a sua entrada na politica institucional? Quais foram os motivos que te levaram a ocupar esse espaço? 

Karen Santos: Então, eu já estava quase me formando em 2013 e iria virar uma desempregada, não tinha previsão ainda de ser chamada no concurso público, fui ser chamada no finalzinho de 2014 para assumir enquanto professora da rede estadual; e dentro desse processo de transição, tu sai do movimento estudantil, tu vai pra onde? Eu não enxergava no PSTU, eu não PSOL, não me enxergava no PT, eu não me enxergava dentro dessas estruturas que não contribuíram para a gente ter uma orientação do que fazer com as lutas contra a Copa, as lutas contra o aumento da passagem que se massificaram de uma forma única aqui nosso país em 2013; que não atuaram para criar um processo de transição para uma tomada de poder, não fizeram uma reflexão do que foi aquelas lutas. O PT era governo em 2013 e ajudou a operar a criminalização e a violência contra os militantes. Então nessa negação de tudo a gente pensou “Não adianta só negar, o que a gente consegue contribuir?”. Assim a gente criou o Coletivo Alicerce, me filio ao PSOL em 2016 democraticamente para concorrer, para fazer essa disputa dessa política vinculada ao território, vinculada a um trabalho de base constante e a disputa da revolução brasileira. 

Então a gente faz essa discussão na campanha 2016 do povo que batalha, falando sobre revolução, falando sobre mudanças estruturais. Fui muito questionada por “Karen tu deveria fazer uma campanha que falasse mais sobre os problemas do município”, mas a gente sabe que os problemas do município são determinados para os problemas nacionais e, última instância, para os problemas globais. Então como é que a gente contribuía com a formação política do nosso povo, que foi muito educado a pensar a caixinha da sua rua, do seu representante do seu bairro e é essa disputa do município. Não, nós fizemos uma campanha para falar sobre os grandes problemas do nosso país, olhando para a cidade, buscando entender um pouco mais a fundo porque a gente desconhecia os problemas de Porto Alegre, e conseguimos aí a primeira suplência do PSOL em 2016 com 2.652 votos. Assumi em 2018 no lugar da Fernanda, que é eleita deputada federal e faço uma campanha também para deputada federal, no sentido de ajudar a Fernanda se eleger e ocupar essa cadeira de forma efetiva. Nessa campanha a gente faz 16 mil e alguma coisa de votos. Assumo em 2018 vereadora e de vereadora suplente, assumo essa cadeira efetivamente e agora em 2020 a gente faz a campanha novamente, campanha do povo que batalha, com os mesmos pressupostos chega de sufoco, direito já, Brasil precisa de uma revolução, e a gente consegue aí a cadeira de mais votada da cidade com 15 mil e algumas coisas de voto, que eu não estou recordando agora. Então um pouco é essa nossa trajetória institucional. 

CEAF: Você me mencionou que não havia conseguido aprovar nenhum projeto na câmara? Então eu gostaria de lhe perguntar, qual é a importância de ocupar esse espaço, de disputar esse território? Por que mesmo sem aprovar nenhum projeto é importante estar aí? 

Karen Santos: Acho que não é só a câmara, reflete o que é o sistema. O sistema faz produzir dentro de alguns marcos, na academia também tem isso. Se não tem lattes, não mordes. Então ali também, te colocam dentro de uma atividade de produção de projetos de leis, muitas vezes, projetos que não dialogam com as realidades centrais da cidade. Nosso problema acho que não é a falta de leis, a gente tem muitas leis, inclusive muitas leis que não são implementadas e que não são fiscalizadas, então essa negativa dos setores da Câmara de aprovar os seus projetos reflete a polarização política está colocada no Brasil. Tem um setor ali de extrema-direita, quase do tamanho da oposição onde somos dez (cinco negros e no total somos dez) e que não vão aprovar os nossos projetos. Essa é a leitura que a gente tem de três meses de câmera. 

Tá bem difícil, a gente abre a sessão com debate sobre cloroquina, com debate sobre a reabertura do comércio da cidade e sobre o comunismo. É um debate bem raso, bem chucro e dialoga muito com o que o presidente Bolsonaro está fazendo. A gente vê ali um combate às ideias, a ideologia, que o socialismo, que o comunismo, que quem luta por democracia por direitos sociais trabalhistas coloca. Então também de muito sobre isso, não só uma questão racial. E em que tange os cinco ali, eu acho que é um constrangimento não muito grande para uma câmara conservadora, de pessoas velhas, de pessoas brancas, endinheirada, termos cinco vereadores jovens, negros e oriundos desses lugares, que nós não queremos falar sobre black Money, nós queremos falar sobre direitos, sobre poder, decidir sobre os rumos da nossa vida, do nosso trabalho, das nossas comunidades, é para além de se integrar da lógica econômica e social imposto. Eu acho que se fosse um negro de direita, talvez, nós não tivéssemos esses mesmos constrangimentos. Se fossemos um Holiday, se fosse um Fernando Camargo (o presidente da fundação Palmares), um Hélio Negrão, que são políticos negros de direita, que reivindicam essas pautas liberais e reivindicam reformas em cima dos trabalhadores. Então diz também sobre essa polarização e como sermos negros e mulheres, foram quatro mulheres e um negro eleito, também diz sobre esse medo, esse receio, que eles têm de deixar nós nos criarmos na cidade enquanto uma referência de luta e de organização política. 

Eu acho que o tempo inteiro eles tentam nos desmoralizar, nos atacar, nos desmoralizando porque eles querem nos constranger para a gente não consiga exercer os nossos mandatos. Então a gente que entra no parlamento e dentro do parlamento eles estão tentando criar um clima de coerção e de guerra para a gente se sinta acometidos, que a gente não consiga se pronunciar e usar daquele espaço para aquilo que a gente veio, que é falar sobre os problemas reais das pessoas. Eles enchem a pauta de kit cloroquina, de problemas do tipo “porque em Cuba...”, “porque na Rússia...”, “porque na China comunista...”. Coisas que a gente pensa: “nossa, isso é tão anos 1960”; e a gente não consegue, muitas vezes, colocar as nossas discussões porque eles são maioria e eles conseguem transformar qualquer projeto bom em algo ruim. Por exemplo na segunda-feira eu tive um projeto muito bom sobre a fila única para as pessoas que estão com COVID-19 para poder acessar os hospitais privados e esses serem comprados pelo SUS, e ter critério porque tem muita gente furando a fila. Eles desmontaram meu projeto, foi uma sessão de horrores. Eles descaracterizam completamente o projeto. São dificuldades do nosso tempo, e como é que a gente usa aquilo ali com uma coisa boa? Quem é que assiste à TV Câmara? Quem é que acompanha as sessões do Parlamento? São questões que eu fico o tempo inteiro me colocando porque é um desgaste emocional gigante, e agora com a pandemia tá difícil de ocupar as ruas, de fazer assembleias e plenárias nos bairros, tá difícil. Então a gente está o tempo inteiro reavaliando a nossa tática de comunicação, porque tá difícil. 

CEAF: E não é contraditório pensar que no Brasil atual, que tem todo esse contexto violento, você seja a vereadora mais votada? Não é uma bipolaridade? 

Karen Santos: Quando a gente ganhou aqui teve um cara que fez uma manchete assim no jornal: “como uma vereadora com 700 seguidores no Twitter fez mais de 15 mil votos?”. Ali começou as pessoas querendo saber de onde eu tinha vindo, como é que tinha sido o fenômeno Karen Santos. Quem é teu pai? De onde é que tu veio? E a galera não entende porque a gente diz que é uma política do coletivo, feita por muitas mãos e a galera não entende. Eu acho que a esquerda não entende, a grande mídia não entende. Eles não concebem, não juntam, dá um tilt no cérebro pensar sobre isso. Eu acho que quanto mais a gente se desenvolve enquanto coletivo, mais perigoso vai ficando porque tu vê o processo de consciência de gente que entrou ontem no coletivo. As falas, as minhas falas, a galera fala: “Karen, se tu vê a suas falas agora e as suas falas quanto tu entrou em 2016, em termos de conteúdo, de debate, de firmeza.” Então a gente está dando saltos de qualidade muito importante nas nossas campanhas de agitação, na nossa propaganda, no nosso enraizamento.

Isso daí um Parlamento não concebe, eles não entendem, eles não eles vêm pessoas ali, eles vêm os vereadores, eles não concebem que as assessorias, no caso as nossas, são meus companheiros, eu estou subordinada a eles, então eles têm quando ele de decisão. Essas reuniões que só vereador vai, só vereador fala, é uma coisa que para a gente não existe. Então são coisas que o tempo inteiro a gente vê que a galera não entende, não quer entender. E para mim melhor, porque daí a gente consegue ter mais espaço assim para conseguir seguir fazendo o nosso feijão com arroz que ninguém dá nada. E o nosso resultado não é só um resultado eleitoral, não queremos ter isso daqui a quatro anos. Se daqui a quatro anos eu fizer menos votos, até para nós, é melhor porque a gente sai um pouco da vitrine. Se a gente conseguir compartilhar isso com mais Karens, se a gente conseguir produzir outras pessoas para conseguir ocupar esses espaços junto comigo e a gente dividir, porque 15 mil votos elegiam três pessoas, para nós é mais interessante do que eu ser a mais votada. Aumentamos a nossa estrutura, mudamos de sede, conseguimos mais três sedes em Porto Alegre, vamos para a região metropolitana. Essa construção para nós interessa mais do que ser a mais votada vereadora. Vitrine é perigoso. Então quanto mais as pessoas acham que o nosso trabalho é pouca bosta (“ah, esse pessoal aventureiro”, “ela só está lá porque é um movimento negro de mulheres”, etc.), para nós melhor.

CEAF: Como você vê a igualdade, o que você pensa que é a igualdade e como a sua liderança, como o seu mandato contribui para a construção de uma sociedade igualitária? 

Karen Santos: Acho que a gente bate muito diferente com esse senso comum das pessoas do político, do homem branco, velho, engravatado, na nossa forma de falar, na nossa forma de se comportar, na nossa forma de dialogar, de estar presente, de ser acessível. Nós fazemos muita questão de ser acessível porque a gente sabe como é difícil as pessoas acessarem a câmara e as discussões do Parlamento, então não cabe às pessoas irem até lá, como muitas vezes eu vejo as pessoas cobrando. “Vocês têm que vir aqui, tem que lotar essa câmera”. Hoje em dia com a precarização do trabalho está difícil as pessoas acompanharem a política. As pessoas não têm recurso para acessar Folha de São Paulo, Correio do Povo, Zero Hora, essas coisas todas. Elas acessam na vida comunitária, então é lá que a gente tem que estar presente. Então acho que essa nossa conduta em relação à política nos ajuda a desenvolver essa perspectiva de que todo mundo é importante, de que todo mundo tem um papel nessa construção, não tem tarefa que seja melhor ou pior, eu não estou à frente nem atrás de ninguém, eu estou ao lado e eu cobro muito das pessoas que estejam junto conosco nessa construção. Não basta cobrar, não basta votar, a gente também tem que desenvolver essa capacidade criativa e gestora em relação aos nossos problemas. 

Do que o estado não nos dá, o que a gente consegue construir e constituir entre nós? Desde um projeto pedagógico até um mutirão, porque isso diz muito sobre poder desenvolver isso nos trabalhadores que é o que é sempre delegado ao outro. Trabalhadores executam e o intelectual político elabora, então a gente tenta sempre aproximar a elaboração da execução e a avaliação, e disso os balanços para retomar. A gente conseguiu avançar desde uma tarefa simples que é elaborar um completo até uma discussão em relação aos grandes projetos que vem para nós. Vale a pena perder os anéis para não perder o dedo? Até que ponto que ponto vale a pena? Então a gente tenta fazer com que isso seja da forma mais democrática possível porque não diz só sobre o a pauta imediata, diz sobre problemas e questões quem quer assumir poder vai ter que tomar para si. Escutar o tempo das pessoas para que elas dediquem o tempo da sua vida para o fazer político, o fazer político enquanto espaço de realização. 

Então não é só elaborar, é fazer uma arte de uma camiseta, fazer uma serigrafia, é fazer o almoço das crianças que vão lá para terreiro da mãe Paty. A gente tem militantes que vão fazer só isso. “Karen, eu não quero participar de reunião, eu faço isso e está ótimo porque cada um e cada uma tem algo a contribuir, não precisamos de todo mundo dedicando 100% da sua vida para política. Isso é do processo de consciência de cada um, de cada uma. Ao mesmo tempo, como é que a gente contribui para colocar essas grandes discussões para que cada um e cada uma compreenda e tenha uma relação de confiança, porque às vezes a gente não vai compreender tudo, mas tu confia.” E a relação de confiança foi algo que se perdeu na esquerda. O povo não vai para rua porque não confia, vai para rua para apanhar, tomar chumbo, ser criminalizado e talvez isso não vai dar em nada. Talvez isso vai dar numa reunião e que vão negociar por mim. Eu vou entrar numa greve que não vai dar em nada. Então essa desconfiança da política enquanto um instrumento de mudança é algo que está presente na situação política. Eu acho que a gente aproximar esses laços de construção para que as pessoas compreendam de dentro como é que essas discussões e essas decisões ajudam a desarmar um pouco essa desconfiança e fazer com que as pessoas tenham um certo grau de compromisso com o fazer político. 

Todos somos intelectuais, não existe isso do intelectual destacado. Acho que cada um tem a contribuir relação à leitura da realidade e nós que viemos no movimento estudantil, do movimento sindical, temos muito que aprender sobre esses outros espaços, que são negados enquanto espaços de constituição política. Normalmente a gente coloca tudo dentro das caixinhas pré-concebidas: a política revolucionária é essa, o sujeito revolucionário é esse e vamos embora; e isso não está nos ajudando muito. Então também enquanto coletividade desconstituindo muito dessas certezas, dessa firmeza, que foram passadas para nós na nossa tradição; e buscando contribuir a partir do Marxismo, materialismo histórico dialético, o quê que é isso diz sobre o Brasil, do nome e o papel de uma organização política em um país do  tamanho de um continente, com divisões grandes de regiões, uma fragmentação imensa do trabalho, que a gente não tem aquele proletariado da indústria, no campo a gente tem o agronegócio, os pequenos agricultores, o Movimento dos Sem Terras. Estão passando por um momento de derrotas atrás derrotas, isso diz muito também sobre momento de louvor que foi o lulo-petismo. Me lembro de uma fala do presidente dizendo que estava orgulhoso de no último ano o MST não ter protagonizado nenhuma ocupação de terra. Isso diz muito sobre essa acomodação à ordem. Não ocupou não porque não tinha o latifúndio, não ocupou porque estava negociando. A ocupação é um movimento legítimo. 

Enfim, coisas desse tipo. E são as tarefas do partido, reconstituir todas essas partes. A luta do campo, da floresta, da cidade. Ter instrumento para que as pessoas façam política. Eu acho que é um pouco disso, a nossa busca por igualdade, se dá para dizer isso, a gente não é igual, a gente não quer ser igual, a gente quer ter as nossas diferenças respeitadas. Essa coisa da igualdade me incomoda, eu acho que não é igualdade que a gente está buscando. A gente quer a tal da equidade, e busca nesses projetos. Quem disse que precisa ser só um projeto de nação? Quem disse que é só um partido? Essa coisa me incomoda também. Cria para nós mais problemas do que a gente já tem nessa reorganização. Então acho que a busca da nossa diferença, da valorização, e busca dos problemas em comum que é o que nos une. O que nos une são os problemas, a escassez, isso que faz a gente se enxergar no branco, se enxergar na classe média, se enxergar no gay, se enxergar no indígena; e ter empatia. Empatia vem de análise, não vem de um sentimento maior, não vem da miséria porque na miséria as pessoas se matam. Como é que tu organiza tua fome? Como é que tu organiza? Porque são essas condições que são colocadas para a gente, não é romântico. Então empatia também é uma palavra que às vezes também me incomoda, parece que basta querer, basta desenvolver um amor ao próximo. Com fome? Com fila única? Agora todo mundo furando fila; se fosse meu sobrinho eu também iria furar, não é um debate moral, é uma discussão de como é que a gente consegue atacar interesses que fazem com que a miséria se instaure, que a gente fique disputando na miséria. Enfim, é um pouco disso que a gente tenta contribuir. 

CEAF: E por que você é uma voz da equidade, ou da igualdade? Por que podemos te considerar uma liderança na construção da igualdade e da equidade? 

Karen Santos: Olha, porque me colocaram com essa tarefa, alguém tinha que fazer no coletivo, “vai tu”, estou brincando. Mas, mais ou menos, por ser mulher, ser negra, ser professora. A gente discussão do sujeito, como a gente conseguia personificar a voz do coletivo e foi através desses referenciais de raça, de classe e de gênero. É ser uma tribuna, conseguir levar essas questões da forma como eu ouço, e conseguindo colocar isso enquanto um problema geral, enquanto um problema de Brasil. Não é um problema da Maria, não é um problema da Tereza, não é um problema do Miguel, é um problema do Brasil, porque qualquer elemento que tu pegar da realidade, qualquer fenômeno, se tu for ver, diz sobre o socio-metabolismo do nosso sistema e é isso que me interessa, isso que interessa aos revolucionários; conseguir para além da aparência, do fenômeno, conseguir buscar esses sentidos que coloque a luta de classe de novo enquanto algo que movimenta a nossa história e o papel do movimento de massas e do partido, mas que não substitui o movimento. Constituir movimento não depende do partido, mas quando o movimento vem, oriundo das próprias contradições desse sistema que tá podre, sistema civilizatório que não dá mais sentido para nada, aí que o partido se faz importante e a gente tem que se preparar para isso. 

O parlamento é um dos espaços onde a gente constitui essa voz, porque as pessoas têm voz, as pessoas falam e falam muito bem sobre os seus problemas, muito melhor do que eu, às vezes eu me sinto apequenada, porque é isso, a realidade de quem vive é diferente, eu não eu não consigo abstrair, por mais que a Karen Santos seja uma construção coletiva, ela é extremamente limitada porque ela ainda é a Karen, a pessoa Karen. Tudo isso que tu me perguntas, “como é que tu tá assistindo?”, eu não me sinto, não sei nem como é que pintam nas portas da revolução. Tu fica pensando numa pessoa, eu não sei que as crises que esses caras passavam, mas eles conseguiram de certa forma traduzir o momento político e as tarefas que estavam colocadas para o povo. Eu acho que o meu papel é esse facilitar a vida das pessoas para que elas não precisem penar tanto para compreender os mecanismos da opressão, da sua exploração; é assessorar. A burguesia tem um monte de assessores, cada parlamentar em cada Câmara, Assembleia, no Congresso, é um assessor político desses setores econômicos. O nosso povo é que não tem assessoria nenhuma, mas o povo que não entende de leis, não entende dos seus direitos, que não negados a ter acesso à filosofia, sociologia, à outras formas de se relacionar entre si que não essa forma competitiva. 

Quando penso a voz da igualdade, a voz eu acho que também remete muito a esse lugar, em um messias: “a Karen é a voz”, mas não sou a voz mesmo. Eu sou cheia de contradição, inclusive, mas eu acho que é uma tarefa, um trabalho, que eu estou assumindo, que eu quero assumir com mais qualidade, que eu quero me dedicar mais, parar negar (porque eu nego muito, por isso eu acho que está tão sofrido estar nessa tarefa hoje), assumir ela pra mim. Também estou vendo no ano que vem, na próxima eleição, não venho, então é uma decisão que também perpassa por mim. Eu não posso ficar refém do coletivo, mas eu fico pensando que tem uma tarefa, eu tinha que me sentir mais honrada de estar lá, estou buscando um pouco isso junto com os meus companheiros porque hoje está tão difícil, tão doído, é tão frustrante que às vezes eu me questionando. Então hoje eu não estou em um bom momento para falar e ser voz de alguma coisa, mas eu acho que é uma tarefa que alguém tem que cumprir, não legitimar aquilo ali como o espaço de construção de igualdade e democracia, porque não é, quem fala isso mente. E esse espaço de disputa, é difícil, não e legal. Se a gente acha que os políticos são pessoas muito intelectualizadas, mas são pessoas muito medíocres, não tem nada de muita elaboração em torno daquilo. Muitas vezes eles vão lá para votar sim ou não, nem sabem o que estão votando. É assim que funciona a democracia burguesa. Eu acho que eu tenho que ser franca com as pessoas.

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