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“Mostrar que é possível ter políticas pensadas a partir de corpos não hegemônicos e que não significa que vai ser perfeito, que a gente vai conseguir dar conta de tudo, mas que cada vez mais a gente precisa tirar essa hegemonia do corpo branco, masculino, cisgênero, heterossexual; que o mundo é muito além disso, fazer frente a isso é o principal ganho para mim [...] A gente sabe que a nossa vida, enquanto indivíduos, vale muito menos. Então é uma insegurança constante, mas a gente se reafirma Quilombo nesse lugar de força e de coletividade”

- Juliana Gonçalves

Juliana Gonçalves é uma mulher negra, jornalista, comunicadora, ativista e militante. Ao longo da sua trajetória, Juliana fez parte de diversos movimentos ativistas relacionados com o movimento afro, principalmente nas pautas relacionadas com as mulheres negras, incluindo a marcha das mulheres negras. Atualmente ela faz parte da “Mandata Coletiva Quilombola” da deputada estadual Erika Malunguinho.

CEAF: Juliana, você poderia nos contar um pouco da sua trajetória, do seu processo de militância?

Juliana Gonçalves: Eu sou de uma família de pessoas pretas, todo mundo da minha família na parte materna é preto de pele clara, assim como eu, o mais brasileiro possível. Minha família é da Bahia e a minha mãe era mais velha de uma família de cinco irmãos e ela se casou com um homem branco.  A primeira vez que eu fui pensar um pouco nessa questão da cor da minha pele e do meu cabelo como algo negativo foi justamente nos diálogos com a família branca do meu pai. Quando entrei na universidade, uma professora branca da Universidade Mackenzie, uma vez trouxe a discussão das cotas, dizendo que ela tinha um amigo negro que era muito inteligente e esse amigo negro tinha dito que sem dúvida o negro não precisava de ajuda de branco para nada e, que sem dúvidas, a política de cotas foi pensada por um branco racista.

Aquela velha inversão da questão do racismo. Eu fiquei muito incomodado com essa fala, e tentei argumentar e fui meio que só eu que trouxe algum tipo de argumentação. Eu lembro que eu saí muito incomodada, e entendi que eu precisava ter argumento para sobreviver naquele espaço. Foi aí que eu comecei a trazer mais politização para minha existência negra. Eu sempre soube que eu era mulher negra, mas eu não via sentido em ter que, antes desse acontecimento, passar por um processo de letramento sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil.  A partir daí eu começo a me aproximar de um coletivo negro que existia no Mackenzie e de algumas figuras negras que vão me apresentando a luta, vão me levando para espaços. Eu fui me envolvendo em várias atividades, como o coletivo “Mulheres de Odúm” e depois fiz parte da APJN (Articulação Política de Juventudes Negras). Ali eu estava muito no início da minha militância e fui entendendo as diversas esferas.  Um marco que eu sempre gosto de destacar é que eu sou jornalista de formação, então sempre trabalhei com questões de comunicação, mas nunca tinha conseguido aliar o que eu trabalhava com a minha consciência racial, até que em 2010 eu sou convidada para trabalhar no CEERT, uma organização aqui de São Paulo, muito alinhada com movimento negro.

Lá eu participei de vários projetos. Também participei de uma seletiva da ONU Mulheres, uma chamada pública para jovens lideranças do Brasil. Eu fiz esse programa com mulheres de mentoria de um ano. Esse foi um processo de imersão muito importante para mim, para minha a trajetória. Enquanto estava no CEERT eu participei de um projeto de comunicadoras negras, e a gente fez a cobertura da CONAPIR de 2013. Esse foi um processo muito legal que eu também me conectei com outra jornalistas negras, etc. Nesse processo eu estava lá no dia que teve o lançamento da Marcha das Mulheres Negras. Eu vi que estava acontecendo, mas eu não estava envolvida até que comunicadoras negras me convidaram para participar do núcleo impulsor aqui de São Paulo, que ainda estava sendo estruturado, mas não tinha ninguém de comunicação. Ali comecei a estruturar os GT’s, já estava tudo muito incipiente, mas eu acho que com a minha chegada deu um tom menos partidário. A marcha estava sendo ainda aqui em São Paulo, depois eu fui conversando com outras mulheres e percebendo que cada lugar tinha uma realidade, e aqui em São Paulo estava ainda muito restrita, numa ambiência petista e que era necessário ir além, tinha que ser algo que atraísse toda e qualquer mulher negra que se visse naquela construção. Então o meu primeiro movimento foi convidar várias comunicadoras negras que eu conheci para uma reunião da Marcha. Eu me envolvo com a marcha aqui, aconteceu muita coisa antes da Marcha, mas para mim a Marcha é um marco político para o Brasil no sentido de organização política das mulheres negras, da gente demonstrar mais uma vez que a gente tem pauta, que a gente tem força política, mas pessoalmente para mim foi, e segue sendo uma grande escola política.

Eu acho que se hoje eu estou um pouco mais madura politicamente é por conta das coisas que eu vi, aprendi, ouvi nesse processo de construção da Marcha. Eu estava bem na linha de frente dessa construção para o bem e para o mal, mas fiquei muito feliz dessa sensação de chegar em Brasília e ver aquele mar de mulher negra, tudo empodera, e você olhava para todos os lados e era só mulher. Eu acho que é uma das cenas que até hoje quando eu falo eu me arrepio porque foi muito difícil tudo para gente chegar até ali, mas ao mesmo tempo aquilo acho que mandou um recado não só para minha geração, acho que vai ficar perpetuado para várias gerações. Depois do processo da Marcha também volto a atuar enquanto jornalista no “Brasil de Fato”, fui editora do “Brasil de Fato” por um tempo, com esse olhar de tentar racializar as pautas, etc. Escrevi para Trip também com esse mesmo olhar. Nesse processo, em 2009, eu integrei a COJIRA, que é a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial, sigo na COJIRA desde então. A Marcha é um lugar de muita força, de muita potência, que eu amo muito. Nesse processo da Marcha eu fui cada vez mais me politizando, cada vez mais tendo relações, inclusive institucionais.

CEAF: E como foi essa passagem da militância para a política institucional?

Juliana Gonçalves: Por uma conjuntura aqui do movimento negro de São Paulo, a gente via a possibilidade de fazer uma cadeira para Deputado Estadual, a gente tinha um bom candidato para Deputado Federal, que era o Douglas Belchior, mas do movimento, alguém que se colocasse enquanto o movimento negro, disputando, as pessoas que existiam não estavam muito alinhados com que eu acredito, com o que outras pessoas próximas a mim acreditavam, então eu fiz parte dessa decisão de entender que era importante disputar política institucional. Eu lembro até hoje dessa conversa que tive com a Érica e com a Sandra, que hoje é a nossa chefe de gabinete, que a gente estava em uma sinuca de bico porque a gente não sabia quem apoiar e ao mesmo tempo a gente via que tinha alguma coisa ali, que eu nem sei dizer o que é, que mostrava que onde a gente colocasse energia, nós três, ia ter alguma coisa. A Érica se colocou para esse papel, eu confesso que foi um alívio porque, em alguma medida, eu me sentia pressionada a me colocar, mas eu tinha muito medo como sigo tendo até hoje e pensei muito nisso: “acho que é importante a Érica ir, ela que está com mais certeza, vou ajudar a fazer acontecer”.

Então ajudei a campanha da Érica de um jeito quase e milagroso, a gente recebeu R$5000 do partido, a gente fez uma vaquinha onde a gente conseguiu acho que 16 ou 17 mil reais. Só sei que a campanha toda foi feita com menos de 20 mil reais e a gente conseguiu 55 mil votos. A Érica teve voto em mais de 90% de todas as zonas eleitorais do estado, muito voto de opinião, então a gente vai ver cidades pequenas e grandes que às vezes ela teve 10 votos, mas teve volta ali. Então ela teve voto muito difundido e concentrado aqui em São Paulo e na grande São Paulo (Guarulhos, ABC, etc.). Depois que a Érica elege, que foi incrível, eu nem sei mensurar a alegria que foi, ao mesmo tempo foi uma tristeza quando o Douglas não conseguiu se eleger, então eu também fiquei baqueada com esse lance de política achando que eu não queria mais, que eu não servia para isso. Eu sabia que viria, já que eu ajudei a construir, como veio, o convite para participar do mandato e eu confesso que eu fiquei com medo, me deu uma retranca falei: “Nossa, o quê que eu vou fazer da minha vida? Será que eu vou? Será que eu não vou? Trabalhar com uma política tem volta ou não tem volta?”; mas resolvi aceitar o desafio. Então estamos aí no 3º ano de mandato, praticamente, e na mandata eu faço articulação política. Acho que contei tudo bem resumido, mas espero que tenha dado para entender.

CEAF: E será que você poderia expandir um pouco mais sobre a mandata? De que se trata? Por que uma mandata?

Esse nome, a “Mandata Quilombo”, é uma criação nossa, da Érica, uma criação coletiva. A gente entendeu que é importante, cada vez mais, porque depois que a Sueli Carneiro fala sobre epistemicídio, em um diálogo com o Boaventura, e ela vai falar sobre isso como a gente some, como a gente é apagado das coisas, a gente vai percebendo cada vez mais a necessidade de se afirmar em algumas coisas. Então a política é um espaço muito branco, muito masculino. Eu nem sei se é mais branco ou mais que masculino, mas está ali na raiz da coisa. Então a gente achou que era interessante trazer essa figura da mandata, que não era o mandato masculino. E a nossa mandata tem cinco homens na nossa equipe, uma equipe de 25 pessoas, nós, mulheres negras, somos a maioria. A nossa mandata é 100% negra, não tem ninguém branco na nossa mandata. Isso já foi alvo de crítica, isso já foi alvo de discussão, mas esse foi uma escolha política, inclusive quanto a gente escolhe isso de colocar só pessoas negras em todos os cargos no manem uma dificuldade de achar quadros negros é com aquela especificidade técnica e política alinhada com a gente. Por isso que a gente sente que, com esse mandato para 100% negro, o que a gente está fazendo também é um processo de formação.

A Vilma Reis, muito carinhosamente, chamou que a gente faz na Mandata Quilombo de uma escola de ciência política porque é isso que a gente faz, no sentido de que ninguém ali já tinha trabalhado institucionalidade. Então a gente entra na institucionalidade crua, do zero; claro que isso tem lados positivos, positivos tudo tem, mas também tem muito lado negativo. Nesse um ano de mandato, um outro de pandemia e, agora, o segundo ano de pandemia, a gente já passou por diversos momentos, mas a gente está em um processo constante de resgatar a importância política do que a gente está fazendo na maior Assembleia Legislativa do Brasil (na Assembleia Legislativa que Érica, entrando em 2018, vira a 3ª mulher negra lá dentro), então é tudo muito significativo e muitas vezes isso coloca muito peso no que a gente faz, então isso faz com que a gente seja muito criteriosa, muito minuciosa, muito na retranca, com medo mesmo porque a gente sabe que as coisas que a gente faz têm ou podem ter um certo peso; e muitas vezes a gente não sabe nem lidar com isso, mas eu acho que a gente está cada vez mais conseguindo ver a importância política e resgatar a importância política e simbólica para mulheres negras, para a questão negra.

E aí a mandato ela é feita de ativistas, então todo mundo que trabalha na mandata já tinha um certo ativismo, mas nunca tinha se envolvido com política institucional, por isso que a gente se vê enquanto Quilombo, são várias inteligências, são várias forças, são várias cabeças pensantes. Ao mesmo tempo, o quilombo é harmonia, o quilombo é força, mas que nome é guerra também, você tá ali no embate, você sabe que é uma construção frágil porque o que que somos nós na linha histórica, o que somos nós do ponto de vista de segurança, então a gente viu que a gente vive no país que assassinou uma parlamentar. Assassina muitos, mas assinou Marielle Franco e depois de três anos não se deu resposta. A gente sabe que a nossa vida, enquanto indivíduos, vale muito menos. Então é uma insegurança constante, mas a gente se reafirma Quilombo nesse lugar de força e de coletividade.

CEAF: E por que é importante que exista uma mandata nesse momento e contexto atual?

Juliana Gonçalves: Eu acho que a gente chega aqui, nesse momento e nesse contexto, fruto de uma luta que vai além da gente, que a gente olha para trás e não tem fim porque eu acho que, mesmo falando especificamente da política institucional, quando gente lembra de Antonieta de Barros, a própria Theodosina Ribeiro aqui em São Paulo, é um lugar ainda tão que não é nosso, que foi tirado da gente essa oportunidade de estar. Eu olho para trás e eu penso na simbologia de uma Benedita da Silva, de uma que tá aí dentro do processo da constituinte e onde os racismos eram mais escancarados ainda, numa Theodosina, quando eu penso numa Matilde Ribeiro, numa Luiza Bairros. Então quando eu vou olhando, eu vejo que a gente veio se preparando para ter uma mandata há bastante tempo. Eu não tenho dúvidas que se naquele momento histórico-político, se essas mulheres tivessem condições para ter uma mandatos de, predominantemente, de mulheres negras transgêneras, etc., eu não tenho dúvida que elas também tivessem feito essa escolha, mas naquele momento não era viável como ainda não é viável na realidade do Brasil. O que a gente faz aqui ninguém fez e, às vezes, porque isso traz um peso, um medo, muito grande porque a gente sabe a fragilidade que é isso. E não digo só fragilidade dos corpos, no sentido de violência física, mas também a fragilidade jurídica que a gente tem muitas vezes por todas as questões. Eu vejo que é muito importante no sentido de mostrar que é possível a gente juntar inteligências negras para pensar, não só a condição de negro, mas a condição do Brasil.

É o que a gente tenta fazer em São Paulo, especificamente. Então acho que mostrar que é possível ter políticas pensadas a partir de corpos não hegemônicos e que não significa que vai ser perfeito, que a gente vai conseguir dar conta de tudo, mas que cada vez mais a gente precisa tirar essa hegemonia do corpo branco, masculino, cisgênero, heterossexual; que o mundo é muito além disso porque essa mente (branca, cisgênera, heterossexual, elitista) ainda dá o comando, ainda diz o que é político ou não, ainda quer dizer onde é meu lugar e onde não é meu lugar, o que eu posso e o que eu não posso enquanto mulher negra, enquanto ativista, enquanto mãe. Então a gente fazer frente a isso é o principal ganho para mim. Só de a gente ter sido eleita, já é uma coisa que eu não vou falar chamar de “inexplicável” porque eu acho que é um lance que tem razões muito subjetivas. O que a figura da Érica e o que a Érica propõe é muito vanguarda, então quando eu digo que ela teve voto em 90% das zonas eleitorais isso significa que esse pensamento de vanguarda, que esse pensamento que muitas vezes a gente não consegue nem atingir, mas que tá lá também materializado no corpo de uma mulher negra, trans nordestina como ela, dredada, artista; que isso não está só na gente. Então isso existe em 90% da zona eleitoral, aí não importa se foram dez pessoas em uma zona, se foram 500 em outra, 1500 em outras. São pessoas que estão acompanhando isso e estão querendo depositar a esperança em outro lugar, nessa outra política.

A Érica fala muito sobre a alternância de poder, que inclusive é algo que a direita usa muito nessas confusões de discurso que a direita gosta de fazer para se crescer. E a Érica trouxe essa alternância de poder para um outro lugar, que é esse lugar racializando as questões porque aqui no Brasil, embora seja o país com mais negros fora da África, a gente ainda, assim no frigir dos ovos, eles tentam fazer todas as questões acontecerem sem olhar a racialização necessária, sem olhar os territórios. Então acho que quando ela pressiona nesse sentido de trazer que toda a discussão é racializada no Brasil, como um país como o Brasil de herança escravocrata, de trabalho escravo até hoje lá em cima, de capitanias hereditárias, de cinco famílias comandando da mídia desde sempre; então é fazer frente a esse poder institucionalizado que muitas vezes a gente nem sabe o rosto que tem, como são as pessoas, o que comem, como dormem. A gente não sabe de nada, mas a gente sabe que existe e que elaboraram o mundo e o Brasil do jeito que está hoje, e a gente quer mudança. Então para mim é muito potente ver que tem muitas pessoas que entendem essa narrativa. Isso se constrói a nossa eleição, mas a gente vê como isso foi um pouco generalizado.

Então na eleição que Érica se elege, várias outras mulheres negras e indígenas já conseguem se eleger também no Brasil. Agora nessa seleção que a gente teve essa mesma coisa então como tá potencializado. É surreal pensar a quantidade de mulheres trans eleitas que a gente tinha é, basicamente, antes e depois de Érica Malunguinho. Eu acho que a votação dela e a campanha dela de um jeito trouxe um fôlego novo também e ela bebe isso também do de antes, desde Marielle, antes de Marielle, a Benedita, a Lessi. Eu acho que essa importância de manutenção dessa fagulha de esperança, de tentar demonstrar que têm outros caminhos, outra forma de fazer; que a política não precisa ser esse lugar distante, esse lugar que só aparece para ferrar a gente. Então eu acho que esse lugar que a gente nutre com o nosso tempo, o nosso trabalho, todo da mandata.

CEAF: Já que estamos falando de política, de mandata, de construção política, pensando no Brasil atual, como fazer para passar dessa “democracia” que temos para uma verdadeira democracia plena, uma democracia que não seja é anti-direitos, uma democracia que não seja violenta para as pessoas negras?

Juliana Gonçalves: Assim que o Bolsonaro se elegeu aqui, eu fui convidada pela Fundação Rosa Luxemburgo para ir até a Alemanha falar sobre o Brasil, para falar sobre como isso aconteceu do ponto de vista ativista, de militância, de mulher negra, etc. Eu lembro que as pessoas ficavam chocados com o fato de eu não estar chocada com a eleição do Bolsonaro porque eu acho que o Bolsonaro dialoga com um Brasil muito profundo, um Brasil que existe, que está ali latente o tempo todo. Ele não é um fenômeno que você se criou, não. Tanto não é que a gente que como as ações deles ressoam. Esses dias eu vi que uma médica lá de Santa estava sendo processada por que estava tratando um paciente com cloroquina e o paciente morreu, então o pensamento do Bolsonaro ressoa muito numa elite, não uma que viveu tropicalismo e que gosta de Caetano, eu estou falando de um outro Brasil, de um Brasil mais rural, de um Brasil mais arcaico, um Brasil que não se pensa.

O Bolsonaro não se pensa, ele não se vê enquanto o homem branco privilegiado, então tem esse Brasil que não se pensa e ele existe. Não é à toa que o Brasil que pode não se pensar é o Brasil privilegiado, é muito sintomático que ele mude agora (recentemente ele passou inclusive a usar máscara) depois que os bancos se unem para falar “cara, agora tá demais, agora não tá dando mais”. Então ele ouve o e ele ouve e dialoga com esse Brasil das profundezas, essa coisa arcaica e tacanha. Eu fico pensando muito nisso: nesse momento, e com essa força política (que mesmo ele sendo do jeito que é, ele tem) a importância de a gente ter contrapontos, muitos contrapontos, muitas pessoas falando outras coisas. Eu acho que é isso que a gente está vivendo agora. Eu lembro que tem algum texto que eu escrevi onde eu falava alguma coisa sobre pactos frouxos, e é isso que a gente fala que o Bolsonaro vem de um Brasil profundo, significa que, em certa medida, todo mundo sempre viu e estava vendo o Bolsonaro crescer e com quem ele estava dialogando e muita vista grossa foi feita para a gente chegar onde a gente está. Eu lembro que eu fiz uma reflexão nesse sentido de que a gente, de fato, a gente nunca teve uma democracia real aqui no Brasil (não sei se é real ou não, muitas pessoas adjetivam a democracia), e infelizmente, como que a gente tem uma própria democracia era necessário a gente adjetivar.

Então trazer que a gente precisa de uma democracia antirracista, gente precisa de uma democracia que tenha preocupação com o meio ambiente, que tenha um olhar específico para os povos e comunidades tradicionais (a gente tem então só os quilombolas, temos quilombolas, ribeirinhos, caiçaras, isso também é o Brasil que, muitas vezes, é totalmente ignorado) e que a gente precisava de uma democracia que se fizesse menos pactos frouxos e que, eu acho que é o que foi feito muito e por muito tempo. Então quando a gente ia aí até pensando no que a esquerda e aí a Érica fala dessa forma e quero repetir aqui que ela fala “eu critico a esquerda porque eu faço parte da esquerda, se eu fosse da direita eu estaria falando outras coisas”. Eu também me coloco enquanto uma mulher de esquerda, então eu me sinto à vontade para criticar algumas ações. Mas eu vejo, por exemplo, que todas as concessões que foram abertas e para Lula ser possível, para ter dois mandatos, para conseguir eleger Dilma, teve aí várias coisinhas que aconteceram que abriram brechas para a gente ter um Bolsonaro, Desde não encarar discussões fortes, por exemplo, eu lembro que na época do Lula teve o programa “Juventude Viva” que para mim foi muito foda isso. Eu nunca participei do programa, conheci pessoas que participavam, mas de fora, enquanto militante, eu ficava “gente, mas isso não é juventude viva porque não é qualquer jovem que tá morrendo, jovem aqui do Itaim Bibi não tá morrendo, os jovens Copacabana não estão morrendo”. Aquele programa, lá atrás, tinha que se chamar “Jovem Negro Vivo”, tinha que ter a coragem de racializar um debate que era legítimo que fosse racionalizado, e não teve essa coragem lá atrás também. O poder existe, o poder está aí, está dado, tem um monte de gente que fala sobre o poder, muita gente que odeia e muita gente que gosta, muita gente que teoriza sobre poder, mas a centralização do poder muitas vezes causa danos irreparáveis e na mídia é o que a gente tem, quando a gente diz que a maioria dos grandes veículos de comunicação seguem na mão das mesmas famílias desde sempre, que vão navegando ali entre democracia e fazer mais um pacto com a ditadura e com a falta de democracia, isso já era uma coisa que me preocupava muito.

Eu lembro que quando Lula entrou uma das expectativas, não só minha, mas de dos jornalistas desse setor, da federação de jornalistas, dos sindicatos, é que a gente conversasse sobre isso que tivesse uma democratização da mídia, que tivéssemos incentivos para mídia periférica.  No comecinho não tinha esse lance da mídia negra, embora eu também achasse importante, mas ele não olhou nem para a mídia periférica, então se você vai olhar os anunciantes, o Lula anunciava nos grandes jornais, não colocava nada de dinheiro público em mídia pequena. E como o mundo não dá volta, ele a capota, foi justamente essa mídia que ajudou a colocar várias pás quando quiseram matar a figura política dele. Eu trago esses dois exemplos para dizer que, muitas vezes, no poder, e aí pegando esse período que é longo quando a gente junto a Lula e Dilma ao mesmo tempo, apesar de que são diferentes, mas quando a gente coloca na linha histórica ainda é muito curto esse período desses dois mandatos, eu enxergo como teve coisas ali que eles negociaram que não foi uma boa terem negociado.

O Lula faz coisas fodas, eu não estou tirando os louros, eu acho que muita e foi feita no sentido de abrir caminho para essa discussão, mas no final dos debates muitas vezes não foi feito. Por exemplo, a política de cotas é uma revolução que a gente está vendo ainda hoje, mas não é à toa que junto com a política de cotas a gente tem o período ali com Lula que mais se acelera o genocídio negro, até como uma resposta mesmo das instituições racistas.  Então eu acho que são coisas que não dá para perdoar, não dá para esquecer e que a gente precisa ver mudança. Nesse sentido, para a gente ter uma democracia real, esses pactos com essa galera não podem acontecer, e a gente precisa pensar numa democracia forte que tenha vários mecanismos de participação popular. O Estado hoje é o maior violador de direitos humanos no Brasil, principalmente com o seu braço armado que é a Polícia Militar. Então eu vejo que para a gente pensar numa democracia real, a gente teria que pensar no próprio Estado: O que é esse estado? A gente precisa desse Estado? Ele está tá efetuando os deveres que ele que ele deveria efetuar? E aí quando eu penso experiências aqui do lado mesmo (de Bolívia, Equador) com os estados plurinacionais, com uma outra discussão, eu vou também fervilhando as ideias porque eu acho que a própria ideia de Estado que a gente tem hoje contrapõe à nossa democracia de algum jeito, então que a gente precisava resolver isso.

CEAF: Vamos pensar equidade e igualdade:  o que essas duas palavras significam para você e como você as descreveria?

Juliana Gonçalves: Aqui a gente acaba muitas vezes usando enquanto sinônimos, mas eu sei que têm diferenças. Quando a gente fala igualdade a gente pensa: “nossa, igualdade é a gente dar uma garrafinha de água para todo mundo, todo mundo vai ter igualdade”. A equidade eu já acho diferente porque a equidade já considera contexto, considera trajetória. Então, é uma garrafinha de água dessa para mim, que estou aqui na sombra e estou sozinha, faz diferença; essa garrafinha para uma família de 5 filhos, sem saneamento básico, sem comida todo dia no prato, então será que é só uma garrafinha é o que essa família precisava? Então acho que equidade faz essa conta olhando a conjuntura, olhando as especificidades, e que está tudo bem se eu preciso só de uma se você precisar de três, outra pessoa de cinco, isso não nos torna menos iguais. Qual que é a grande coisa: a gente tem sempre essa confusão de achar que as diferenças que existem e que estão dadas pelo contexto, pela raça, pelo gênero, pela cor, por onde você nasceu, se você tem herança, se você não tem herança, nos torna desiguais, as diferenças vão se tornando desiguais. Eu acho que a equidade vem para mostrar isso, igualdade não é tudo igual para todo mundo e todo mundo ser igual, mas que mesmo nas diferenças as pessoas sejam todas indivíduos de direitos, sejam respeitadas, tenham condições dentro de seus contextos muito particulares, eu acho que é essa a diferença.

CEAF: Como a sua liderança, para além da mandata e incluindo também a mandata, contribui para a construção de igualdade?

Juliana Gonçalves: Primeiro, me ver nesse lugar de liderança, embora eu tenha contado toda essa trajetória, ainda é um lugar de desconforto porque muitas vezes você não tem segurança para liderar as mulheres negras. Esse sentimento de segurança é algo que foi nos tirado lá atrás e que a gente fica aqui tentando reconstruir o tempo todo. Eu não sei se liderança é um estado contínuo, então eu acho que é mais um estado que você está às vezes, tem algo ali que é seu e que vai sempre aparecer, mas eu não vejo como um estado contínuo. O que eu vejo aqui nos processos que eu estou mais à frente, então do processo da Marcha Nacional a gente criou um coletivo aqui em São Paulo, que também chama Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, assim como na mandata, eu acho que uma das principais coisas que eu tenho que fazer é justamente fazer com que as pessoas se enxerguem para além das inseguranças. Então eu trabalho predominantemente com pessoas negras, só com pessoas negras. Todas essas pessoas não só são atravessadas pelo racismo, mas como também elaboram sobre isso, conversam sobre isso, tem consciência sobre isso, então não eu não posso negligenciar isso e ao mesmo tempo que eu não posso apresentar isso enquanto uma barreira.

Isso é o que a gente sobrevive, a gente faz apesar do racismo, apesar do machismo. Então acho que o que eu tenho aprendido muito nesse processo. Antes, enquanto militantes, estar trabalhando com mulheres negras e agora, na mandata, estar trabalhando com pessoas negras, eu tenho aprendido que estar no lugar de liderança com essas pessoas exige de mim que eu consiga o tempo todo lembrá-los da potência que eles são, da autonomia que eles podem ter criando e o quanto a gente é foda, mesmo quando a gente não se sente foda. Então eu procuro exercer uma liderança de muito escuta, na verdade. Eu acho que desde o jornalismo eu tenho, as pessoas acham que jornalistas e comunicadores têm isso muito para fora, têm muito você o que falar, que se colocar, e eu sempre disse que jornalista tem que escutar e tem que escutar bastante porque senão a gente não consegue mediar, se a gente está muito ali preocupada em colocar para fora, a gente não consegue fazer as intermediações com que está de fora.

Então eu procuro escutar muito a equipe, eu procuro coletivizar as decisões, que as pessoas me vejam quase que como uma facilitadora e que entendam que elas têm autonomia e têm potência para fazer as coisas sozinhas e, no máximo, eu estou ali para dar um Norte, mas elas que vão então. Eu tenho aprendido que lidar com as nossas fragilidades é muito difícil nesse processo de estar na liderança porque o tempo todo eu mesma me questiono: Será que eu sou a pessoa para estar nesse lugar? Será que eu sou o bastante para isso? Será que eu estou fazendo certo/errado? Será que eu devia estar fazendo mais? Então também tentar me colocar no lugar mais humano, no sentido de estou fazendo que acho que devo fazer, que considero correto, e esse processo da escuta para mim é essencial para conseguir mensurar e equilibrar as visões de mundo que eu tenho com as visões de mundo das outras pessoas. Então acho que são essas duas ferramentas, de escuta e de tentar fazer com que as pessoas não se esqueçam o quanto elas são foda, o quanto elas têm autonomia para decidir, o quanto elas têm para entregar naquele processo, que ninguém ela é passiva, ninguém ali está só recebendo ordens, que as pessoas cocriam aquela mandata com a gente.

CEAF: Por que você é uma voz da igualdade?

Juliana Gonçalves: Eu acho que eu consigo reverberar lutas que vieram muito antes de mim, eu acho que meu corpo traz essas lutas já marcadas por ser uma mulher, por ser negra. Então acho que eu acabo reverberando essas vozes muitas vezes, então acho que é por isso que eu trago essa questão da igualdade. É o que de fato é o sonho, por mais utópico que seja, é aquele horizonte que a gente precisa ter pra gente continuar indo para frente, e dizer que é possível. Então eu acredito muito que é possível a transformação. Tem coisas que eu sei que eu não vou ver. Tem coisas que nem meu filho vai ver, mas eu acho que o que a gente está fazendo agora é semeando, no nosso caso, um terreno arrasado, uma terra arrasada, mas a gente está semeando coisas para colher daqui um tempo. Se hoje eu posso ser, talvez, uma voz que chame atenção por onde eu estou, o meu compromisso é outras e outras cheguem, que tenham mais e mais vozes e que as pessoas sintam isso: que a gente não está falando com grupinho de militantes, não, a gente tá falando sobre o Brasil, a gente está reverberando ideias do Brasil que tá todo mundo trazendo. Então eu não acho que eu faço nada de inovador nesse sentido. Eu acho que eu tive pessoas muito importantes no processo que me guiaram muitas vezes, que me ajudaram a decidir e que vão me fortalecendo, acho que tem uma força ancestral também que fortalece todas nós, eu tenho a minha ancestralidade também. Mas só faz sentido ser uma voz da igualdade se eu conseguir ajudar a criar esse tecido onde outras vozes vão vir e outras vozes não reverberar, até que nós sejamos maioria dizendo coisas que a gente acredita, e não uma voz que as pessoas podem enquadrar numa caixinha (“ah, ela só está falando isso porque é negra”; “ah ela está falando isso só porque é mulher”; “ah, porque é preta, porque é periférica”), eu estou falando sobre a humanização mesmo dos nossos corpos e das nossas vivências. A vivência branca e masculino é muito humanizada, enquanto as outras não, então a gente precisa olhar para isso assim com uma lupa gigante.

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