“Eu sempre parto dessa ideia do individual para o coletivo, que é como isso afeta todo mundo, que afeta as pessoas no entorno, então de certa forma é um sentimento que me magoa porque também afeta as pessoas que não são negras, porque quando você cria essa falsa ideia de superioridade, que o branco tá preparado para tudo, se acaba criando pessoas inaptas, em lugares que deveria ter o mínimo de aptidão, então, ainda mais se você tem um país em que o racismo determina quem pode e quem não pode fazer as coisas, você tem um reflexo direto na quantidade de pessoas inabilitadas para fazerem funções, você tem menos médicos, tem menos engenheiros, tem menos dentistas, porque são pessoas negras, que poderiam ser dentistas, poderiam ser engenheiros, poderiam ser médicos, bons médicos, bons engenheiros, bons cientistas, que não são porque em algum momento da vida delas, elas foram confrontadas com o racismo impediu de seguir um sonho, de se tornar alguém qualificado, alguém que podia trazer algo de bom para sociedade”
- Juca Guimarães.
Juca Guimarães, jornalista desde 1999, criado no Capão Redondo, bairro periférico de São Paulo, trabalhou na Folha de S.Paulo, TV Gazeta, Diário de S.Paulo, UOL, Agora S.Paulo, Brasil de Fato, Ponte Jornalismo, Repórter Brasil, entre outros. Em 2009, ganhou o prêmio Folha de Jornalismo. Atualmente trabalha no Alma Preta, uma plataforma de notícias que aborda a informação a partir da perspectiva racial.
CEAF: Juca, você pode nos contar um pouco da sua trajetória como liderança, como é que você se tornou um militante e um ativista?
Juca Guimarães: Vou falar um pouco sobre a minha história de vida e ela tem muita relação com o que eu me tornei depois, então a história é mais ou menos assim: Eu sou jornalista desde o ano 2000, entrei numa redação pela primeira vez em 1999. Eu nasci em São Paulo, onde eu moro até hoje. Nasci em junho de 1973 e aqui no Brasil, no mês que eu nasci, foi um mês em que na minha cidade teve um grande surto de meningite. Foi a maior pandemia de meningite naquela década. Inclusive até hoje, é uma época onde mais teve mortes de bebês recém nascidos por meningite no país, e naquele momento, o governo militar, ele encobriu essa pandemia, o que só aumentou o número de mortes. Eu sou um sobrevivente desse período, desde então, um bebê negro que passou na sua primeira infância por esse teste de vida que muitas pessoas daquele mês em que eu nasci não estão hoje aí para contar suas histórias. Isso me deixou muito marcado na vida porque o poder de informação, se você conta para a população o que tá acontecendo, muito mais facilmente você precisa ter soluções para as coisas acontecerem e o jornalismo é isso, o jornalismo, ele traz para a população a informação que ela precisa saber, a transparência do que tá acontecendo.
Então, desde que eu nasci eu me vejo imbuído da necessidade de falar e de me comunicar, de ser um Jornalista. Eu cresci na periferia de São Paulo, no Capão Redondo, um bairro no extremo sul da cidade de São Paulo, super mal planejado, com uma organização de muitas favelas. Eu morei lá dos seis até os 18 anos, durante um período muito e nesse período, nos anos 90 e 80, o Capão era um dos bairros mais violentos do mundo. A taxa de homicídio do Capão Redondo, Capão, São Luís e Jardim Ângela era a maior do mundo, ele foi considerado um dos bairros mais violentos do planeta, por conta da violência urbana e também pelo final da ditadura militar, onde você tinha uma repressão policial muito forte. Eu também passei por isso, por essa fase em que território estava muito ligado a violência e morte prematura dos jovens, naquele momento. Eu entrei na faculdade de jornalismo aos 16 anos de idade, quer dizer, eu comecei a me alfabetizar muito cedo e acabando o período escolar eu já fiz vestibular para comunicação social e no Brasil tem um marco muito interessante que é a lei de cotas para as universidades, que começa a partir da metade dos anos 90, 95 para frente, 98, e ela se institui mesmo é ali por volta dos anos 2000 ali.
Eu fiz faculdade de 91 até 94, na época que não tinha cotas. Eu me lembro que na minha sala de jornalismo por exemplo, na minha faculdade, tinha 68 alunos e eu era o único negro na sala, em um país onde a metade da população é negra. Em um curso de jornalismo, que é uma profissão que representa muito o que a sociedade é, ele tá muito ligado ao dia a dia das pessoas, e ter uma sala que não tinha negros, isso me deixou muito alerta para as diferenças racial no Brasil. Com as políticas de cotas, a partir dos anos 2000, aumentou muito o número de negros na universidade, tanto que agora em 2020 foi publicado dados que nas universidades públicas brasileiras já tem mais negros do que brancos estudando. Então, tendo a formação de comunicação social no período que não tinha cotas, numa faculdade extremamente branca, eu fui percebendo que o jeito de se ensinar jornalismo nas faculdades naquela época e que hoje ainda perdura em alguns lugares, é uma visão eurocêntrica do jornalismo. O jornalismo que se ensina ele é muito inspirado nos padrões da Europa ou nos padrões americanos, que também tem uma origem anglo-saxônica que remete ao eurocentrismo. Então em vez de você ver a notícia, de apurar as razões por trás das notícias, tem muita ligação com a branquitude, que não é racializada, então no Brasil a gente tem uma dificuldade muito grande de entender a notícia, a informação pelo viés racial. E aí é outro motivo pelo qual eu me interessei muito de escrever pensando em como trazer tanto para as pautas do jornalismo a questão racial, como também das pautas que não estão racializadas ainda, mostrar em que contexto a raça influencia naquela determinada situação, em determinada conjuntura social, política e econômica do país.
CEAF: E na sua trajetória como jornalista, quais foram os maiores desafios e obstáculos que você enfrentou?
Juca Guimarães: Acho que o primeiro grande desafio é que dentro das redações, naquelas redações não existiam negros. No jornalismo brasileiro, desde que eu entrei no ramo de jornalismo, existiam poucos negros e menos ainda nos cargos de chefia. Por que que é importante o recorte de ter negros e de ter negros no cargo de chefia? Porque nos cargos de chefia você consegue definir qual é a matéria e qual vai ser o editorial daquela informação, daquele veículo. Se você não tem no cargo de chefia uma pessoa negra, você provavelmente não vai ter um viés racializado ou uma preocupação, mínima que seja, para que os negros não sejam vistos por estereótipos. Outro grande problema do Brasil é que a gente tem um estereótipo do negro, em que você coloca na negritude algumas marcas, alguns carimbos, alguns rótulos que são muito preconceituosas, que não demonstram nem a diversidade, nem a amplitude do que é ser negro e isso prejudica muito, porque é uma imagem que acaba trazendo para o negro um retrocesso já na autoestima, que é outro tema muito importante que eu quero discutir, porque a questão da autoestima no negro é a base da união, o que vai fazer com que exista uma mudança de pensamento na sociedade.
A autoestima e união dos negros, esses são dois pontos chaves para que mude alguns dos conceitos, alguns comportamentos que a sociedade tem em relação aos negros e eu senti esse grande desafio. Primeiro convencer meu chefe branco, na redação de jornais o quanto é importante ter uma visão racializada da notícia e evitar estereótipos que geralmente prejudicam a raça negra em muitos aspectos, inclusive um dos fatores mais preponderantes em relação a isso é em relação a mulher, a erotização da mulher, a mulher negra sempre foi muito vista aqui no Brasil com um estereótipo de beleza e exotismo, mas um estereótipo hiper sexualizado e isso influenciava muitas ações de estupro, abuso sexual, a questão do isolamento, da solidão da mulher negra, existe muitos complexos, a quantidade e a profundidade que têm os desdobramentos dessa erotização, inclusive das crianças mais jovens também, porque essa erotização vinha de muito cedo, e muitas vezes existia uma certa maquiagem em relação à questão cultural, ligados ao samba, a coisa que você tinha que expor naquela hora aquilo ali, e se você achava ruim que a menina branca passasse por essa situação, porque então expor uma menina negra àquela situação, então em muitos momentos eu tive esse tipo de discussão, esse tipo de conversa, na verdade com os resto dos brancos, para tentar entender que o corpo da mulher negra não é um corpo disponível, não é um corpo que pode ser objetificado por conta dessas questões raciais. Então isso foi um obstáculo, principalmente no começo.
CEAF: Como e por que surge o Alma Preta? como é que você começa a fazer parte deste projeto?
Juca Guimarães: A alma preta surge em 2015, numa cidade chamada Bauru, no Estado de São Paulo, onde tem uma universidade estadual pública chamada Unesp. Nessa universidade o coordenador do curso de jornalismo é um professor negro chamado Juarez Xavier, ele é um grande jornalista, respeitadíssimo e também um estudioso de comunicação, autor de livros importantes e uma grande referência do jornalismo brasileiro. Em 2015, o professor Juarez soube que dois alunos queriam criar uma agência, queriam criar um portal, um blog sobre negritude, que se chamaria alma preta, o professor Juarez apoiou esses dois jovens, um é o Vinicius, o outro é o Pedro borges, para que fosse feito esse projeto. Daí o projeto, a criação de um site de notícias que tivesse como foco a questão racial, a luta antirracista, a história do negro no Brasil, contar como a história do negro dentro do Brasil se envolveu realmente, porque no Brasil por muito, muito tempo, a história oficial contada nas escolas não correspondia à história realmente como ela aconteceu.
Existia uma disputa de narrativas no Brasil em relação a como se deu inclusive a abolição dos escravos, as pessoas escravizadas no Brasil, esse processo todo tem muitas nuances, dicotomias, que para a dominação da população negra foi colocada de uma forma em que o protagonismo na luta contra a escravidão não foram as pessoas escravizadas, mas de libertadores brancos, o que não era verdade. Então uma necessidade que a gente tinha no Brasil naquela época e isso vem há muitas gerações do movimento negro, era mostrar o quanto que a história de luta do negro brasileiro, ela já vem desde os processos primários da colonização, inclusive lutar contra o racismo é lutar contra esse legado, essa herança deixada nos países latino-americanos da colonização ibérica. Esse tipo de conteúdo jornalístico, negro, era importante de ser resgatado, essa era uma das ideias do Alma Preta quando surgiu. O Alma Preta, ao longo de cinco anos, conseguiu uma produção muito grande de material que tem como foco, tanto a temática da luta das pessoas negras do Brasil, quanto a luta antirracista em todo o mundo.
Então essa é nossa proposta do site, eu entro no site em 2020, no início do ano, mas a proposta existia desde o começo, a missão sempre foi essa, trazer para dentro do jornalismo essa experiência que até então não existia no Brasil recente, de se falar de uma perspectiva, de uma narrativa negra, sobre as coisas que aconteciam no país, falar de uma perspectiva de uma população negra que também impacta de modo geral. Porque se você pensar que 70% da população, que é mais da metade, se auto declarar negra, segundo dados do IBGE de 2020, a gente diz que a temática negra interessa a maioria do país e influencia inclusive as pessoas que são negras. Então é muito importante ter como foco, a gente não faz um jornalismo para as minorias, a gente não faz uma cobertura de minoria, pelo contrário, a gente faz uma cobertura ampla sobre o país, sobre assuntos importantes da economia, da política, do dia a dia, da cultura, que tem como protagonismo os negros, mas que também tem impacto direto na vida do país como um todo, então a gente fala da econômica, a gente fala das questões políticas, das eleições, porque isso tudo de certa forma dá essa cara, essa estrutura de todo o país e sempre falando em que ponto dessa temática está inserido o racismo, porque o racismo no Brasil ele é estrutural, ele é um racismo pensado na lógica capitalista, no víeis da dominação, então esses dois grandes objetivos do racismo, que é a dominação da população negra e a opressão.
De um lado eles querem dominar, tanto como também quero oprimir, evitar uma tomada de poder ou uma resposta ao racismo e isso pra branquitude, para o poder institucionalizado, é uma tarefa diária e cara inclusive. Não existe uma naturalização do racismo, o racismo é uma engrenagem que é pensada e tem o investimento de dinheiro para que isso continue acontecendo. Então os privilégios brancos que colocam muitas vezes as oportunidades para os negros cada vez mais menores, em patamares de difícil acesso, não é uma coisa natural, não é uma questão lógica, em que existe uma diferença entre brancos e negros natural nesse Brasil, pelo contrário, existe uma estrutura muito antiga, que se renova cada dia, que põe dentro das esferas de poder uma limitação em relação as pessoas que são negras, ao mesmo tempo que cria e reforça privilégios só porque as pessoas são brancas, o que também é chamada de narcisismo branco, em que as pessoas reconhecem o branco não como mais uma raça, mas como uma pessoa que detém o poder e o espaço. Então esse narcisismo branco, ele influencia tanto a ponto da cultura que não é deles ser apropriada por eles naturalmente, então você vê com muita facilidade o branco que toca samba, o branco que faz festa de candomblé, que não é questionado por ser branco, porque se naturalizou que o branco tem essa possibilidade de fazer tudo que ele quer fazer por conta desse narcisismo branco, que é um dos caminhos pelo qual a branquitude tem a dominação da sociedade, mesmo não se auto racializando, eles normalizam a questão de serem brancos para justamente poder dominar e isso tem muito a ver com o fator econômico também, não é uma questão das pessoas brancas agirem assim, a branquitude como um todo age assim, porque essa estrutura desde a época que havia escravidão no Brasil.
CEAF: Como é o que o racismo opera diretamente no mundo da comunicação? Como é que o racismo age nos meios?
Juca Guimarães: Então, é interessante, porque tem duas grandes frentes de ação: uma é a imposição de uma narrativa, então você vê que os meios de comunicação, televisão, rádio, elas falam de um ponto de vista branco, com pessoas brancas na bancada, falando sobre assuntos que são de interesse do branco e quando tem um negro, ele tá ali meio para quebrar essa hegemonia, mas sem um poder decisório, de posicionar aquela notícia a ponto de revisarem aquele assunto, então mesmo quando você vê algum negro na televisão, no noticiário, falando sobre um assunto, ainda existe um crivo, um filtro branco naquela produção e a outra frente que a comunicação brasileira age e age com muita eficiência sobre o racismo, é fazendo com que exista um apagamento da memória negra no Brasil, por exemplo, o Brasil teve grandes intelectuais negros, o nosso maior escritor brasileiro, Machado de Assis, ele é negro, mas pouco se diz isso; o nosso maior escultor, o Aleijadinho, também era negro, mas não se fala muito disso, então existe um grande esforço para que a memória brasileira em relação aos grandes feitos pelos negros, não seja reconhecido, não seja lembrado. Por outro lado, também se tenta minimizar os efeitos da escravidão, então os bandeirantes que eram os desbravadores da expansão brasileira, são vistos como heróis, a gente sabe que eles iam para o centro do país, matavam índios, faziam explorações, então não eram heróis, mas são vistos como heróis. Tem uma reformulação histórica muito forte, nessa questão de como você mostra na imprensa a imagem do negro, o papel do negro na história do Brasil e isso é interessante.
CEAF: Além dos seguidores, que outros impactos o Alma Preta teve dentro do contexto brasileiro e na disputa de narrativas que acontece nas redes sociais do Brasil agora?
Juca Guimarães: Eu acho que o Alma Preta e as redes sociais que se engajam na disputa sobre o discurso racismo, elas têm uma força muito grande na criação da opinião pública, porque até então era difícil se discutir racismo, porque o judiciário que é onde a esfera final que isso é discutido era formado por brancos, então no final as coisas era o visto branco que decidia se isso era o racismo ou se isso não era racismo, e com a mídia negra surgindo, a gente conseguiu fazer entrevistas, conversar com advogados, mostrar o processo e provar que em muitos casos em que a justiça dizia que não era racismo, era racismo sim, né? Inclusive algumas empresas que tinham práticas racistas, propagandas racistas saíram do ar, não porque a justiça falou que era racista, mas porque a opinião pública e a mídia negra identificou ali uma grande oportunidade de discutir racismo, então tem alguns casos, por exemplo o de uma esponja de aço chamada crespinha, que aqui no Brasil tem a coisa do cabelo crespo, que eles usavam como nome de marca para definir um produto de limpeza e a ilustração era um empregada doméstica, não quer emprega domestica seja algo pejorativo, mas se você falar que toda pessoa negra com cabelo crespo é doméstica, é uma discriminação, é um ato racista.
E aí foi a partir de reportagem no Alma Preta e outros veículos de comunicação negra, que a empresa teve que pedir desculpas e tirar o produto, isso para citar um exemplo, mas tem muitos outros casos, pros cabelos, enfim, isso para falar da parte de marketing, de comércio, mas tem caso de pessoas que estavam presas inclusive, e que foram soltas por conta de reportagens que o Alma Preta fez, caso de pessoas que estavam sofrendo há muito tempo violência no trabalho, exploração do trabalho e depois de uma denúncia do Alma Preta conseguiram esses direitos na justiça, enfim, e também isso são as coisas mais tristes, caso de mais violência ligada ao racismo, mas também tem exemplos de filmes sobre situações racistas que foram superados, cursos importantes, peças de teatro, auto estima das pessoas negras, a gente conseguiu fazer com que a notícia negra, eu não ser só notícia de dor, mas também vai ser notícia de sucesso, então vai sair artistas negras que tiveram destaque, atletas negros que tem alguma ação social, que constroem hospitais, que doam cestas básicas, então quando a gente começa a falar desse assunto e criam um nome mais do negro no Brasil.
CEAF: Há uma discussão quando se fala de comunicação, de intelectualidade negra, escritoras, enfim, há uma velha discussão que afirma que se você é um escritor negro, se você é um comunicador negro, você tem que falar de racismo, você tem que falar de sofrimento, do que pode falar no comunicador negro, do que pode falar um jornalista negro?
Juca Guimarães: Então, eu acho que a gente nunca pode esquecer da dor, a parte da dor, porque ela construiu toda essa relação de território e de como estão os instrumentos da vida, a dor, principalmente essa dor do desligamento com a nossa ancestralidade, porque essa ruptura com a disporá africana, ele teve também uma intencionalidade, que é não deixar que os povos africanos que já estavam estruturados e tinham os seus rituais a seu modo de vida ancestral e eficiente na África se reproduzisse no Brasil. Então em vez de trazer para o Brasil uma cultura completa, eles fragmentaram a cultura, e isso é muito, muito sério em relação ao legado do negro hoje nas Américas, mas eu acho que por isso mesmo também, a gente tem que lembrar que a gente sobreviveu a isso, mesmo tendo se esfacelado, quebrado essa nossa herança, a gente conseguiu dos caquinhos que sobraram dela criar outras coisas, então eu acho que hoje o negro tem que falar sim da dor, mas também está habilitado e tá totalmente capacidade de fazer qualquer outro assunto, tanto que você consegue em qualquer área hoje em dia, encontrar negros em destaque, porque eles estão pensando coisas diferentes. Então, esse rótulo também, tem que ser liderança negra, escritor negro, comunicador negro, as vezes cria um outro limite, parece que é um território, uma bolha, da qual você não pode sair mais, né? E acho que também é uma outra questão, porque se você está naquela bolha, quem tá no resto, quem pode dizer tudo, aí vem o branco, então é um outro modelo de dominação e que você não corta a voz não cria o horizonte, então é outro modelo de dominação, que você não corta a voz, mas também você não amplia o horizonte, então é uma forma de limitar muito o horizonte da pessoa negra.
CEAF: Já que falamos de dor, eu gostaria de perguntar quais são as emoções que surgem quando você é uma pessoa negra, uma pessoa afro, vivendo nesse contexto de apagamento, de falta de representavidade?
Juca Guimarães: Eu acho que a questão que envolve sentimentos, ele começa muito para mim, o primeiro impacto sempre ser a revolta. Revolta muito a situação de racismo, por que eu vejo isso como uma grande covardia, é uma estratégia que se usa contra a população negra muito covarde, porque o racismo parte de um pressuposto que se tira a humanidade das pessoas, o racista ele atua de uma forma em que ele considera que o negro não é um ser humano, ele parte da humilhação da própria origem da pessoa como ser humano, isso me revolta de princípio, então sempre que eu vejo uma situação de racismo, e falo muito disso no meu dia a dia, por conta meu trabalho, a primeiro reação, o primeiro sentimento, é uma revolta muito grande, e essa revolta, logo ela se desdobra numa sensação de que isso não é só pessoal, não é contra alguém, contra uma pessoa que sofreu racismo; é direto contra ela, mas é parte dessa estrutura maior que envolve a dominação política, social e econômica.
Então eu sempre parto dessa ideia do individual para o coletivo, que é como isso afeta todo mundo, que afeta as pessoas no entorno, então de certa forma é um sentimento que me magoa porque também afeta as pessoas que não são negras, porque quando você cria essa falsa ideia de superioridade, que o branco tá preparado para tudo, se acaba criando pessoas inaptas, em lugares que deveria ter o mínimo de aptidão, então, ainda mais se você tem um país em que o racismo determina quem pode e quem não pode fazer as coisas, você tem um reflexo direto na quantidade de pessoas inabilitadas para fazerem funções, você tem menos médicos, tem menos engenheiros, tem menos dentistas, porque são pessoas negras, que poderiam ser dentistas, poderiam ser engenheiros, poderiam ser médicos, bons médicos, bons engenheiros, bons cientistas, que não são porque em algum momento da vida delas, elas foram confrontadas com o racismo impediu de seguir um sonho, de se tornar alguém qualificado, alguém que podia trazer algo de bom para sociedade. E por outro lado, você tem educação para a população negra pior, uma saúde pior para a população negra, oportunidades de estudos que são muito baixos para a população negra, que acaba colocando um grande contingente de pessoas à margem de uma vida melhor, uma sociedade mais digna, por exemplo, então isso me causa essa indicação e também uma reflexão sobre o porquê que esse racismo te traz essa posição, não é natural, não é por acaso, é pensado, é orquestrado para ser assim.
CEAF: Como seria a comunicação em um mundo equitativo, como seria os processos midiáticos em mundo igualitário?
Juca Guimarães: Então, eu acho a comunicação podia evoluir para questões mais ligadas ao desenvolvimento humano, por exemplo, falar mais de educação, falar mais de bem-estar, ter menos assuntos sobre violência, sobre miséria para se falar, inclusive seria uma comunicação que ajudaria a sociedade mais estruturada a buscar soluções de problemas que ainda restariam, por exemplo, meio ambiente, poluição. Existem muitos fatores no mundo hoje que impactam a vida do homem, que é fora a relação humana entre eles, e o meio ambiente é uma delas, talvez se não fosse gasto tanta energia, tanto dinheiro para a manutenção do racismo, daria até para salvar o planeta. Então eu acho que seria esse o papel da comunicação também, né, ajudar a sociedade mais igualitária, mais ideal, a enfrentar seus desafios que vão aparecer, mas que não seria mais o desafio do racismo do racismo, mesmo assim, porque é muito grande, é cruel, é um peso muito grande sobre as nossas costas.
CEAF: Juca, por que eu posso te considerar uma voz da igualdade?
Juca Guimarães: Primeiro a minha voz não é só a minha voz. Eu trago comigo a voz das pessoas que eu conheço, que eu entrevisto e que eu me disponho a ouvir, né que é importante também a escuta, escutar as pessoas. Então quando eu vou fazer um texto, eu procuro ouvir, com diversidade, ouvir sem pré-julgamento. Eu quero que as pessoas me tragam informações que possam gerar uma discussão, o contraditório, o outro lado, um contraponto, eu não tento não fechar a minha cabeça pra uma ideia pré-concebida, para o pré-conceito. Então eu acho que a minha voz tem igualdade porque eu desde o início da ideia de escrever um texto, eu parto do ponto de que esse texto não é só o que eu acho, não é um texto de opinião pura e simplesmente e sim um texto que vai narrar algo que acontece no meu dia, o jornalista, ele conta sua história cotidiana, da sociedade, do seu território e o território não é só meu, é de quem tá nele, então ouvir outras pessoas no meu território, inclusive pessoas que pensam esse assunto é importante, então essa igualdade que eu presto no meu texto se reflete no pensamento também. Então eu tenho que entender um problema para aí sim discutir a partir das coisas que eu ouvi sobre ele, que eu estudei, que eu me informei.
Então igualdade tem muita questão do conhecimento, você conhecer um assunto, buscar informações sobre ele e estar aberto, porque se você sabe do assunto mude também e também tem isso, a gente deixa se prender muito a um modelo, né, pronto, que ainda tá em discussão, ainda tá sendo visto como certo ou errado, né? A gente é muito novo, tudo muito novo, até o planeta terra é novo, se você pensar a questão da galáxia, né? A gente tá pouquíssimo tempo, a gente tá ainda tentando sair da caverna. Então a gente tem que evoluir todo mundo junto, né? E o jeito de evoluir mais rápido é justamente dividir o conhecimento, né? Porque o ser humano só conseguiu dominar o planeta terra, não por ser o mais rápido ou mais forte dos animais, pelo contrário, o ser humano tem muitas dificuldades biológicas para sobreviver no ambiente selvagem, é a inteligência do ser humano, a sapiência, o cérebro desenvolvido do ser humano e a sua coletividade de fazer ações conjuntas com outros seres humanos que levou a questão das cidades, do avião, do navio, e toda essa evolução humana veio de uma decisão coletiva de sobrevivência, então assim sobreviver coletivamente, então a minha igualdade, a minha voz de desigualdade é pelo coletivo, é achar que todas as pessoas importam e todas as pessoas precisam entender que é importante lutar pela igualdade, vidas negras importam é um lema muito forte para mim, porque que até então a ideia da sociedade é que algumas vidas não importavam, algumas importavam e outras não importavam, é bem claro e importante deixar bem claro que vida negras importam sim.