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“A questão é que a inteligência ou a eficiência do racismo brasileiro é de conseguir ir desmontando essas possibilidades de uma reação que existe no micro, que existe nas pequenas comunidades, que existe no cotidiano, que existe na forma com a música nova da Elza Soares vai dizendo: “ser feliz no vão e no triz, é a força que me embala”

- Flávio José dos Passos

Flávio José dos Passos, homem negro, estudou teologia, filosofia e sociologia. Atualmente ele é professor de filosofia e sociologia no ensino médio, pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia e técnico de nível superior, concursado, na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista. Atuando na coordenação do Pré-Vestibular Quilombola, Flávio conversa conosco sobre sua trajetória e sobre a situação política brasileira atual.

CEAF: Professor Flávio, será que o senhor podia nos contar um pouco da sua trajetória enquanto liderança?

Flávio José dos Passos: Eu venho do sul de Minas e cresci em um ambiente católico, de uma família negra. Nessa região havia, antigamente, muita congada e cortejos negros de diversos formatos. Ali eu entro para o seminário com 15 anos, no Ensino Médio lá no sul de Minas. Faço toda a trajetória de formação seminarística e me descubro negro nesse processo. Essa descoberta de ser negro no seminário, em uma época em que a Igreja ainda tinha uma forte presença da CEBS, da teologia da libertação, foi muito importante. Durante esse tempo, fiz experiência de imersão na Pastoral Afro e acho que foi a primeira vez que eu me percebi militante.

Em 1995 eu fui para São Paulo, lá foram 4 anos de estudo e militância, que já era uma militância político-partidária, negra nos movimentos religiosos, de seminaristas, padres, bispos negros que havia nessa época na Igreja com força. Depois eu volto para Minas, para a minha região, já tendo finalizado a teologia. Depois eu vou para Passo, trabalhar em uma obra social em um seminário e lá me alio a um pessoal antigo que havia lá tanto do PT, junto com a Pastoral Afro da Igreja, e a gente cria um pré-vestibular alinhado com a EducAfro. Naquele momento eu já começo a me questionar sobre o meu papel na sociedade e na igreja. Depois eu venho para o Sertão da Bahia conhecer uma outra realidade já como padre, e eu acho que o processo de vir para a Bahia já era um processo do tipo ou dava certo eu continuar, ou dali eu sairia. Então dali a 2 anos eu saio da vida religiosa e vou penso em ir para São Paulo para trabalhar na EducAfro, mas acabei ficando em Vitória da Conquista. É onde eu começo reconstruir a minha vida.

Eu tinha uma graduação reconhecida pelo MEC, então isso me credenciou bastante, pois consegui me firmar profissionalmente, mas eu precisava construir a pós-graduação e nesse processo eu fui muito beneficiado por uma conjuntura nacional e que aqui em Vitória da Conquista tinha uma conjuntura favorável. Então a militância que eu trazia pela luta dos cursinhos ela tem um acréscimo agora que é eu entrar para o serviço público num processo seletivo, não era concurso ainda. Eu passo numa seleção, componho, uma equipe de coordenadores, este não era um trabalho meramente técnico, burocrático ou mesmo estritamente pedagógico, era um trabalho político pedagógico mesmo, na sua mais profunda essência. Daí em 2008 eu passo no concurso da prefeitura, saio da educação e vou para políticas de gestão, e é quando eu encontro com uma outra dimensão que são os quilombolas no território de Vitória da Conquista. Então naquele momento, a gente já havia ajudado a criar um pré-vestibular para os jovens da periferia aos finais de semana, mas pensamos que era necessário criar um somente para os quilombolas.  Naquela época o Brasil estava passando por um grande evento, que eu vou dizer que é um dos maiores eventos históricos do país, que é a instituição das cotas para negros e quilombolas. Criamos em 2009 o pré-vestibular quilombola, que para mim é um outro marco muito importante para o movimento quilombola aqui em Vitória da Conquista.  Depois disso e fiz o mestrado e comecei o doutorado, mas continuei envolvido nas lutas pelas cotas para as comunidades quilombolas.

CEAF: Quais são os projetos nos quais o senhor está trabalhando atualmente?

Flávio José dos Passos: Olha, o trabalho que faço é para tentar que a educação escolar quilombola seja efetiva porque ela é lei no Brasil. Existe uma Diretriz Nacional da Educação Escolar Quilombola de 2008 e que não é implementada num dos municípios da Bahia, dá para acreditar numa coisa dessa? Eu participo das reuniões estaduais do Fórum e é triste, é difícil acreditar a força do racismo de conseguir travar, de conseguir fazer com que aquilo que a gente conquistou na década passada, que foi todo um conjunto de políticas e de leis antirracistas e de promoção da igualdade racial nesta década agora, ou você tem o fascismo tentando quebrar tudo que havia sido construído, porque eu tenho professor no doutorado da  UFBA que  falou numa roda no corredor, em 2017: “o golpe não é contra Dilma, o golpe não é contra o PT, o gole é contra a turma do rolezinho e todo o seu potencial de promover uma revolução que o PT só fez ensaiar”. Eu vou mais longe, eu vou dizer que o golpe não é contra Dilma, o golpe não é contra o PT, o golpe é contra a turma do rolezinho e todas as políticas públicas que essa turma negra, quilombola, indígena, de Candomblé, LGBTIQ e feminista empreendeu e conquistou espaços e voz nesse país. Então é uma turma do rolezinho, mas é uma turma do rolezinho que potencializou muito esse rolezinho, falou que o país poderia ser democrático de verdade. Então a turma do rolezinho que tem cor, que tem gênero, que tenha etnia, que tem pauta que tem outras religiões e outras formas de compreender e viver o mundo, isso incomodou muito. Você tem antes do golpe uma articulação de um movimento negro eu diria mais virtual e com a potência muito grande de discurso porque é muito alinhado, diferente do movimento negro tradicional, com os intelectuais negras e intelectuais negros do mundo inteiro e que traz uma nova visão sobre a questão antirracista do que como traduzir a questão de racista para a luta política, política institucional.

CEAF: Como o senhor avalia esse momento politico atual? O que está acontecendo com o Brasil?

Flávio José dos Passos: Eu creio que há uma descrença, nesse momento, na viabilidade seja pela esquerda, e sem chance nenhuma pela direita, de que a luta política institucional partidária seja um canal como pensava a militância da qual participei nas décadas de 1920 e 2000.  A gente acreditava que junto com o PT a gente faria uma revolução a forma de nos pensarmos enquanto país, enquanto população negra. Quando o PT entra, os negros são colocados em espaços muito circunscritos para ficarmos, muitas vezes, brigando entre nós sobre qual era a pauta que a gente iria conseguir fazer avançar dentro do arranjo administrativo de um governo, sem conseguir impactar em nada na construção de um estado menos racista. Então o Estado continuou, veio o golpe e piorou ainda mais, e os governos tentaram imprimir, com muita resistência interna, muitas vezes até dentro dos próprios partidos. Hoje somos chamados aqui no Brasil de Identitários, a discussão passa por aí.  Você tem que desconstruir internamente na esquerda a ideia de que não somos identitários ou de que sendo identitários ou de que, sendo identitários, não sobrepujamos a luta de classes, que elas não são dicotômicas, elas se complementam. Mas a esquerda está, neste momento, talvez buscando um bode expiatório do porquê estamos passando por toda essa onda fascista. É muito mais fácil acreditar que a culpa seja daqueles que nos dividiram, daqueles que enfraqueceram a luta, sem entender que só há esquerda no Brasil e na América Latina pela força da luta das mulheres, pela força da luta camponesa, mas, principalmente, pela força da luta da comunidade negra.

CEAF: Falando sobre isso, uma líder disse que no Brasil, durante os últimos anos, houve um pacto frouxo entre os governos progressistas e as classes médias. Para ela, Bolsonaro é fruto de um Brasil profundo subestimado pelas esquerdas. O senhor está de acordo com essa análise? E eu queria saber também, por que é tão difícil para os movimentos progressistas acolherem plenamente as lutas das pessoas das pessoas afros?

Flávio José dos Passos: Eu acredito que as duas perguntas se complementam. Chegarmos no governo (a gente não chegou no poder), em 2002, e foi fruto de muita negociação no âmbito da esfera política partidária, da representativa e do arranjo democrático que existe no Brasil. Foi uma grande aliança com o mercado, foi uma grande aliança com a burguesia que naquele momento viu no PT a possibilidade de fazer um grande acordo de classes. Essa era a tese de Lula e foi o que funcionou. Só que nos bastidores ou na sustentação popular desse grande acordo, você tinha um histórico de movimentos sociais. Não foi Lula que chegou no governo, não foi o PT que chegou no governo. O que chegou no governo foram camadas e mais camadas sociais representadas ali com as suas pautas vindas de resistência à ditadura militar; vindas do processo de redemocratização; vindas da processo de constituição da Constituinte de 1988; vindas das lutas anti-neoliberais em relação aos governos neoliberais de Itamar Franco, de Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso; mas, principalmente, vindo de décadas do movimento de luta operária, do movimento de luta camponesa e do movimento de luta antirracista.

Talvez o que aconteceu no Brasil seja que o Partido dos Trabalhadores é muito novo, ele é refém esse grande acordo de classes, mas ele é também tributário de uma luta popular plural. E aí como é que ele faz? Só que a formatação do PT, por mais que na base nós assistimos o PT ser construído por esses movimentos ele tinha cor e o PT tinha endereço, que era a periferia. Só que os quadros intelectuais do PT, os quadros de articulação do PT, principalmente pensando as grandes lideranças sindicais, pensando as grandes lideranças intelectuais de sustentação ideológica do PT, também eram tributárias de uma visão social política do país de que não havia aqui, como sendo o maior problema do Brasil, o racismo. Então quando você traz um século de democracia racial, um século de embranquecimento, um século de silenciamento da sociedade brasileira para com a questão racial, para com as mazelas que o racismo provocou na nossa sociedade, a esquerda (emergente em plena ditadura com o PT) está mais ouvindo os modelos de pensamento marxismo europeu da primeira metade do século XX, do que preparada para ouvir os próprios intelectuais marxistas e de esquerda do próprio Brasil. 

Estou falando de Florestan Fernandes, um intelectual branco que a esquerda poderia muito bem ter ouvido se ela não conseguisse ouvir, por exemplo, Abdias Nascimento. Já que nunca conseguiu entender Abdias Nascimento, que entendesse ao menos Florestan Fernandes. Se ela nunca conseguiu entender Clóvis Moura, que entendesse ao menos esses intelectuais brancos de esquerda e que trouxeram para o centro discussão da sociologia e do debate político no Brasil que existe aqui uma sociedade dividida em classes, mas também hierarquizada racialmente. Então, há um déficit da parte da esquerda da formação teórica da esquerda. Por mais que formação popular política, mesmo que fragmentada nas suas lutas e nas suas bandeiras, quando chega no governo há uma disputa de discurso. Naquele momento, se conseguiu distribuir essas forças em diversos setores. O movimento negro ficou setorizado e reduzido a uma secretaria.

Era um grande avanço, mas era também um grande perigo de isso se transformar numa armadilha porque as outras áreas do governo se sentiram livres para continuar repetindo aquele modelo de estado universalista, para continuar repetindo aquele modelo de estado que tinham práticas e concepções racistas de conceber a população como um todo. Então, se no primeiro momento a esquerda quando nasce do movimento operário, quando nasce das reflexões que vão dar sustentação para o surgimento do PCB, do PDT e do PT, principalmente, e depois do PSOL, todos esses partidos vão deixar a desejar na transversalidade, vão deixar a desejar no recorte de etnia e no recorte de gênero para pensar as desigualdades de classe estruturadas a partir das igualdades de gênero e de raça no país. Isso aí é uma situação que a esquerda, como eu falei na pergunta anterior, tem dificuldade principalmente nesse momento de golpe, de fazer uma autorreflexão. Eu já ouvi integrantes de lideranças de esquerda dizerem recentemente para mim, depois de 2016, que o Brasil corre o grande risco de repetir o que aconteceu nos Estados Unidos com o acirramento das divisões e setoriais de chegarmos a um recuo. Como teve nos Estados Unidos com o Trump, no Brasil se teve a mesma resposta. Se subestimou, como vocês falou, todo esse caudal reacionário que está no inconsciente e no dia a dia conservador da nossa sociedade, mas eu acho que a esquerda subestimou entender quais eram as bandeiras que ela estava carregando; que não bastava apenas garantir o acesso a um cartão de crédito, garantir o acesso a uma condição de vida, uma mobilidade social. Havia de se discutir o Brasil em profundidade, havia que se discutir e encarar quem era esse país. Entender e reconhecer como o racismo aqui talvez seja uma das violências históricas e permanentes mais fortes do mundo. A gente aqui costuma hierarquizar que aqui no Brasil o racismo não é tão violento como foi na África do Sul, que não é tão violenta como foi nos Estados Unidos (ou é nos Estados Unidos). Só que, nesses países, você conseguiu ainda manter viva uma articulação da comunidade negra em torno de diversas bandeiras ou de diversas situações em que ela se mobilizou e que ela conseguiu reagir.

A questão é que a inteligência ou a eficiência do racismo brasileiro é de conseguir ir desmontando essas possibilidades de uma reação que existe no micro, que existe nas pequenas comunidades, que existe no cotidiano, que existe na forma com a música nova da Elza Soares vai dizendo: “ser feliz no vão e no triz, é a força que me embala”. Eu acho que essa diz muito dessa estratégia que o negro brasileiro das comunidades quilombolas, das comunidades das periferias, dos terrenos precisou ir construindo a sua própria sobrevida, já que politicamente a gente não só não tinha uma representação da esquerda para dizer “entendemos o que vocês passam e não queremos falar por vocês, mas vocês precisam estar aqui e nós reconhecemos o lugar de vocês aqui”, mas a esquerda nunca conseguiu conceber sair da casa grande, a esquerda nunca conseguiu conceber dividir o espaço da casa grande ou transformar o quilombo ou  transformar senzala ou transformar a periferia como sendo o lugar do Poder, como o lugar onde a democracia é possível emergir nesse país. A esquerda preferiu ocupar a casa grande e falar “a gente pode fazer por vocês”.  É claro ela está pactuou não foi com a comunidade negra. Quando veio o bolsonarismo, essa grande comunidade negra (beneficiada por políticas da esquerda) não estava entendendo qual era mesmo o papel dela e ela sucumbiu e aderiu a um projeto que bem necrófilo. Essa Esquerda do Brasil é branca, pronto. Sendo bem objetivo.

E elas está longe dela reconhecer que existe uma esquerda negra. Eu fico pensando quão pouco éramos. Só de gerações anteriores a mim como a Sueli Carneiro, quão poucos eram e o quanto conseguiram fazer. Penso em quanto somos hoje, principalmente a nova geração que tem uma potência de discurso; estou pegando da geração de Marielle para cá, dessa turma de Djamila Ribeiro para cá. Pessoas de 18 a 40 anos que têm uma potência e um alcance no discurso, mas que estão circunscritos para pensar. Talvez seja esse o grande dilema da esquerda com os movimentos que têm sido reduzidos à pasta de identitários, mas que não deixam de dizer à esquerda que o quê eles estão falando, é o que a esquerda não reconhece como sendo o grande problema dessa sociedade. A esquerda quer continuar batendo na tecla que o nosso problema é a luta de classe e aas desigualdades sociais e que uma vez resolvido isso todos os problemas da humanidade serão resolvidos. Então você fica com discurso de pessoas falando línguas diferentes, não conseguem se entender, mas que está fortalecendo no país uma luta, que eu vou continuar chamando de esquerda, do movimento negro (tachado de identitário) que em nada é de direito. É mais fácil o movimento negro ter criado segmentos e espaços em que se conseguia negociar e ter representatividade, inclusive dentro da direita e da extrema direita. Você tem no Brasil movimento negro do PSDB, PMDB. Você tem agora gente negra que se diz contra o movimento negro e que está lá na extrema direita. É bom que a gente sabe quem é quem, mas essa nova geração é o que a esquerda nunca quis ou aceitou ser, porque aceitar, parar para ouvir a autoridade da fala do outro e reconhecer a desautoridade da sua própria fala.

CEAF: Eu queria perguntar sobre o tema do nosso projeto, que é igualdade ou equidade, e eu queria te perguntar o que essa palavra significa para o senhor e como que a sua liderança contribui para a construção de sociedades mais igualitária?

Flávio José dos Passos: Eu acredito que a palavra igualdade, principalmente, com a ideia da Revolução Francesa, com a ideia aqui todas as resoluções, todos os estatutos e tudo que se idealizou na sociedade capitalista, a ideia de igualdade fica muito no campo do ideal. Então se é o ideal, não necessariamente eu preciso alcançar. Eu posso sonhar, eu posso até reconhecer a possibilidade, eu posso até reconhecer que algumas pessoas têm direito de lutar por igualdade; mas a gente tá falando igualdade dentro de uma sociedade estruturada no capital, estruturada na raça e no gênero. Então é quase o anacrônico, é quase é dicotômico, é quase uma contradição profunda; porque ou você desconstrói o que sustenta a desigualdade nessa sociedade, ou você, na intenção de promover a igualdade, só adia, você só a posterga, você só a deixa no campo das ideias, no campo das possibilidades no longínquas.

Nós temos ótimas leis, nós estamos ótimos estatutos, ao menos no Brasil. Depois da redemocratização se reconheceu as desigualdades no Brasil pautados e alicerçadas nos 4 séculos de escravidão, mais de um século de república e de processo de higienização dessa sociedade, de branqueamento da sociedade cultural, social, biológico; da miscigenação forçada que, historicamente, essa sociedade é levada seja no campo biológico, social, cultural, ideológico. Então falar em igualdade só vai ter sentido se a gente conseguir primeiro pensar duas outras categorias. Uma de reconhecimento, a gente vai conseguir falar no Brasil de igualdade se a gente reconhecer a nossa história, se a gente reconhecer a nossa sociedade como organizada e estruturada de uma forma que o negro e que a população negra ficasse de fora do desenvolvimento, ficasse de fora do acesso à base para a sobrevivência, pra vida em dignidade.

O pior é que, muitas vezes, quando a gente fala igualdade a gente se se contenta, como nos governos os progressistas, com que as pessoas tenham direito a ter uma vida menos sofrida. Ninguém está a fim de promover, até agora nos governos progressistas que puderam acontecer nesse país, reformas profundas e ninguém falou em reforma agrária, ninguém falou em reforma dos meios de comunicação, ninguém falou em reforma tributária, ninguém falou em nenhum tipo de reforma mais profunda. Então a igualdade, o que pode ser reduzida a ideia de igualdade, é a ideia de compensação. Eu acho que a gente confunde muito no Brasil a ideia de igualdade com a idade compensação, que politicamente foi traduzido por ação afirmativa. O outro conceito que eu quero pensar igualdade, que dialoga mais com equidade, é a ideia de reparação. Vai chegar um momento em que o crescimento dessa linhagem de luta antirracista vai retomar pautas que vinham lá de Abdias Nascimento, que vinham lá de outros movimentos negros do primeiro momento pós-abolição que era: quem vai pagar a grande conta que o país nos deve? O modelo de promoção da igualdade racial no Brasil é muito avançado frente à desigualdade racial que existe, mas ele é muito contido frente ao que realmente deveria ser a promoção da equidade. 

Nesse grande pacto de classes o Brasil, ao chegar no poder um grupo progressista, optou por alimentar categoria da igualdade numa perspectiva da compensação histórica, longe de ser uma compensação, reduzindo a pequenas práticas não consensuais e não efetivas de ação afirmativa. Eu não estou diminuindo a importância, eu estou só dizendo do limite do alcance dessas ações para a superação da desigualdade racial que ela é fato. Eu não sei quantas vezes você já esteve no Brasil conversando com outras pessoas que não militantes, que não intelectuais, que não gestores... Conversa com uma pessoa negra como você e como eu no ponto de ônibus sobre qualquer um desses conceitos, traduzidos por palavras mais simples. A gente vai ter surpresas. Por isso a educação é revolucionária e perigosa. A gente não vai se falar em reparação, a gente vai continuar falando de ação afirmativa, a gente vai continuar falando de datas comemorativas, a gente vai continuar falando de algumas políticas pontuais para os quilombolas, algumas políticas pontuais na saúde corrigindo, enxugando o gelo, apagando fogo numa floresta em tempos de seca. A gente vai ficar acreditando que a gente tá contribuindo para a promoção da igualdade, a gente está reforçando. É super necessário esse trabalho, mas não podemos perder de vista que ele está muito longe do que a gente precisaria fazer ou do que, no âmbito do micro, os nossos antepassados fizeram.

Os quilombos surgiram não como remendo, não com ação afirmativa, mas sim com ruptura guardando todos os processos de negociação. O hip-hop surgiu e se afirmou no Brasil com uma característica muito própria, que não pode nunca ser confundido como uma cópia de outros movimentos nos Estados Unidos, como uma cultura ao racismo. No âmbito da política pública, eu creio que a sua pergunta vai nesse sentido, a promoção da igualdade racial continua sendo construída e pinginda, nem sei existe essa palavra (no sentido de pinça, no sentido de pingada, de fingida) a partir da casa grande. Desculpa a sinceridade, mas é um desabafo no final dessa entrevista numa quinta-feira santa. E o negro e a negra, pensando fanonicamente, precisa precisaria conseguir isso pela educação e pela descolonização das mentes. A sociedade brasileira, a sociedade da diáspora está pré-disposta e disposta diariamente a afirmar a inviabilidade do povo negro. A inviabilidade de um conceito, olha que palavra poderosa, de um conceito correto da nossa forma de existir. Aí a política de igualdade racial vem para dizer assim: “a gente tem um lugar de fala, a gente consegue se impor, a gente consegue ter uma agenda”.

Em muitos lugares, essa política de igualdade racial virou um calendário ou cronograma anual de 5-10 datas em que se tira a fotografia, se faz um evento, se faz algumas falas, mas a política que estrutura a desigualdade fica intocável. Eu estou voltando lá em 2022 para se perguntar: a esquerda vai conseguir impor? Porque o momento é esse: se existe uma extrema direita no Brasil no poder, é reagindo a minha você e a milhões que acreditam nessa possibilidade da turma do rolezinho revolucionar esse país e essa América Latina; não mais a turma da intelectualidade branca acadêmica. Eu vou dizer da esquerda limpinha, que aqui no Brasil tem a expressão da direita limpinha, eu vou dizer que existe também a esquerda limpinha, a esquerda branca. Uma coisa aí como é igualdade, eu não me iludo, mas como se diz aqui no Brasil “é o que temos para hoje”. Se o PT voltar com o mesmo discurso, com a mesma estrutura de organização dos espaços de poder reduzindo a luta antirracista a um adendo, um anexo, uma nota de rodapé, um capítulo à parte lá no final do livro na estruturação desse país a gente vai continuar sendo um monte de caixão nas ruas, como vai começar a acontecer no Brasil daqui alguns meses. A gente continuará sendo massacrado por essa sociedade, pela polícia, pelo desemprego, pela falta de condições, pela educação deficitária e a maioria que sofre com tudo isso é a população negra.

CEAF: Por que a gente pode considerar o Senhor e a sua trajetória como sendo uma voz da igualdade?

Flávio José dos Passos: Talvez quem é conhecido por perceber uma inquietação. Eu acho que a grande dificuldade da população negra na diáspora no Brasil, na Bahia. principalmente agora pós governos progressistas, é que uma boa parte dessa população acreditar que não é possível mudanças, não é possível transformação, que não é possível um processo revolucionário, seja qual for a vertentes. Você tem um assustador processo de aquietação da população ou de conformação da população num contexto neoliberal, e ele força as pessoas desacreditarem na possibilidade da luta coletiva, da transformação, da construção de uma nação. “Isso não é possível, eu vou tentar ao menos me manter vivo, eu vou tentar construir a minha vida, minha felicidade, a minha conta bancária, nem que seja para pagar dívida, mas eu não vou acreditar nessa via” que é política. Você participar de um movimento social de uma luta antirracista, da pauta pela igualdade ou equidade é um movimento político e talvez as pessoas hoje estejam desacreditando, nessa pós modernidade, inclusive da possibilidade de a luta fazer sentido.

Então continuar acreditando, talvez fruto da herança de todos os passos que eu dei, eu sou muito grato de ter passado por todos os lugares que eu passei. Um militante não nasce pronto, uma pessoa com consciência ou com disposição ou utopia não nasce fruto de um curso no final de semana, ou mesmo de um doutorado. É um acúmulo de experiências, de acertos e erros, de interpretação da realidade e, principalmente, de perceber o que precisa ser feito. Se eu não tenho a consciência de que algo pode ser diferente, dificilmente eu vou conseguir dar o próximo passo de acreditar no que precisa ser feito. Eu não tinha consciência de o que era a desigualdade, essa consciência eu fui adquirindo gradativamente. Eu não tenho eu não tenho consciência de deixar que algo pode ser feito e eu nunca fazer. Talvez eu nem sei se eu me enquadro nessa condição de alguém que luta, de alguém que é um representante da luta, eu não tenho essa a certeza porque eu acho que ele a luta coletiva. Mas em Vitória da Conquista, que é uma cidade que você precisaria vir conhecer e conviver aqui; eu falo que o racismo não é igual no mundo inteiro, ele tem as suas especificidades muitos profundas... lutar contra o racismo parece que é ir contra a maré, mas eu não acho que seja diferente só tem sabores muito próprios.

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