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“A igualdade que a gente pode almejar e a que deveria existir é igualdade de acesso, a igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, igualdade de humanidade, de uma humanidade ter o mesmo valor que outra e não certos grupos serem considerados humanos e outros não, terão tratamento digno de humanidade e outros não”

- Cinthia Gomes

Cinthia Gomes é jornalista, e atua nas áreas de Comunicação, Negritude e Relações Étnico-Raciais. Além disso, também é integrante da Comissão de jornalistas pela Igualdade e como consultora, realizou projetos nas áreas de cultura negra e educação. Como intelectual, a líder pesquisa a obra e vida do Jornalista Luiz Gama, orgânica, promove o diálogo entre a produção acadêmica e os movimentos de base, participando da organização da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, desde 2017. Nessa entrevista, Cinthia fala sobre sua trajetória, sobre a forma como o racismo opera no meio jornalístico e sobre equidade.

CEAF: Você podia nos contar um pouco da sua trajetória?  O que lhe motivou a tornar-se uma líder?

Cinthia Gomes: Eu costumo dizer que não teve um momento em que eu descobri a minha negritude, que eu me descobri negra ou mesmo que eu tenho me tornado negra. Eu me lembro, desde criança, de que eu entendia que eu era negra, sabia que eu era negra, entendia o que era ser negra e as coisas que isso implicava na minha vida. Isso sempre foi muito muito nítido para mim desde criança, então em relação à percepção racial, consciência racial, até mesmo eu diria, da minha parte meio que já vem desde criança e não foi de família exatamente, foi por observação mesmo, porque a geração dos meus pais não era uma geração, não que não era uma geração militante porque existem militantes importantíssimos da idade dos meus pais, mas eu digo que aqui no Brasil a ideologia prevalecente na época era aquele discurso da democracia racial e de que a gente não tinha racismo no Brasil, que o que existiam eram o diferenças sociais, não raciais, existia diferença entre pobres e ricos. Então, considerando que existia diferença entre pobres e ricos, mas que coincidência, a maioria dos pobres eram pretos e os ricos também eram brancos.

As estratégias de sobrevivência da geração anterior à minha era de passar batido, fazer o máximo para passar batido: Raspar o cabelo no caso dos homens e alisar no caso das mulheres; se vestir de acordo; estudar, ter uma ascensão por meio do estudo, isso foi uma coisa muito presente na minha família. Nisso, você meio que escamoteava sua negritude, se desse para passar batido, você passaria batido. Como eu vim diferente, sei lá porquê, desde criança, já tendo essa percepção e essa consciência, eu já fui crescendo sendo negra, e a partir de uma determinada idade isso começou a me motivar a ser militante. Eu acho que essa facilidade de perceber o racismo também não me deixou viver minha vida tranquilamente. Foi um caminho que eu não sei se eu escolhi, eu acho que não, eu acho que foi um caminho inevitável eu começar a fazer coisas e lutar por uma equidade racial no Brasil, para me colocar à disposição da luta antirracista com o objetivo utópico de acabar com o racismo e com o objetivo real de diminuir os efeitos do racismo no Brasil. 

Como militante, fazendo alguma coisa, fazendo parte de coletivos, eu considero um marco que no ano de 2005, que foi o ano em que eu e algumas colegas da faculdade, orientados por um professor, constituímos um grupo chamado “Dandaras” e a gente tinha um quadro na rádio de cinco minutos, que depois virou um programa de uma hora, na rádio universitária “Gazeta M”, que era vinculada à Faculdade Cásper Líbero, que foi a faculdade que eu cursei aqui em São Paulo. Eu sou jornalista, me formei em jornalismo.  A gente organizava exposições na faculdade, debate, cineclube, enfim, a gente introduziu a discussão sobre a questão racial na faculdade. Eu me formei em 2007 e a gente continuou um pouco, né porque algumas pessoas estavam formadas, mas outras ainda estava na faculdade, depois de um tempo ele se encerrou. E aí eu continuei na militância, eu faço parte de dois coletivos:  Comecei com os Jornalistas Pela Igualdade Racial, desde essa época de depois de formada; e mais recentemente, acho que há uns 5 anos (já 15 anos essa história eu estou contando), eu faço parte da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, e aí já fazendo uma militância interseccional em questões de raça e gênero. Paralelamente a isso, eu também continuei minha carreira profissional. Eu fui repórter por 10 anos em redação, fui repórter de rádio, de pauta diária que não tinha a ver com a minha atividade militante, mas o que não quer dizer que eu não fosse militante em todos os lugares que estivesse, inclusive no ambiente de trabalho.

CEAF: Quais foram as principais dificuldades/ obstáculos que você durante o seu percurso de liderança? 

Cinthia Gomes: Então eu acho que as dificuldades que eu tive nessa minha trajetória foram bastante relacionadas a eu tentar levar essa pauta, esse debate, em todos os lugares que eu tivesse. E, infelizmente ou pesadamente, eu acho que eu sempre tive inserida em ambientes em que eu estava meio que como infiltrada, que eu era uma presença que não era o perfil comum ali. Então eu trabalhei em grandes empresas de comunicação: Estadão, CBN, são lugares que não são lugares de grande presença negra. Eu tinha um ou outros colegas negros; tinha mais na parte da técnica, no caso da rádio, e motorista, mas não tinha repórter, chefe de reportagem, coordenador de jornalismo. A mesma coisa no Estadão. Nesses ambientes sendo minoria, a minha vida escolar toda eu fui minoria, porque eu também tive oportunidade de estudar em boas escolas, então também era minoria, depois na faculdade continuei sendo e agora mais recentemente também no mestrado. Acabei de concluir o mestrado em Ciências da Comunicação, fiz na Escola de Comunicações e Artes da USP, pesquisando atuação do jornalista Luiz Gama, que é um grande líder abolicionista, intelectual negro do século XIX, político, maçom, jornalista, advogado e poeta. Então, os ambientes que frequento, são majoritariamente brancos, assim eu estou sempre levando questionamentos em relação a essa lógica brancocêntrica, por exemplo, dando exemplos práticos no jornalismo.

Eu era aquela presença que estava querendo fazer matéria sobre cultura negra, levando as divisões das pautas do movimento negro para dentro da redação como pautas de relevância social não, porque eram pautas militantes. Existe uma dificuldade muito grande dos meios de comunicação reconhecerem o protagonismo negro na sociedade, em entrevistar pessoas negras, em ter especialistas negros nas suas fontes, em pautar assuntos sobre o viés racial, apontar o racismo. Tem um grande medo de se falar sobre isso, uma grande inabilidade e um preconceito generalizado de usar desculpinha de dizer que esse é um assunto segmentado, como se não fosse um assunto de interesse da sociedade brasileira que é constituída por mais da metade de pessoas negras. Então ainda que seja um assunto segmentado, é o segmento da maioria.  Então, no ambiente de redação, essas foram as dificuldades que que eu sentia. Agora no ambiente universitário da pós-graduação, para mim foi um ambiente mais pesado, sofria racismo mais pesado, nunca tinha passado as coisas que eu passei na USP. Então foi o lugar que eu tive mais dificuldade de fazer embates de ideias, confronto de pontos de vista, com aquelas professoras velhas racistas, que ficam só reproduzindo coisas que já foram superadas há muito tempo, e querendo que os alunos façam pesquisa só usando aqueles autores brancos, velhos e que também já foram rebatidos, corrigidos.

É um lugar de concentração e de manutenção de uma estrutura de poder que se traduz nesse encastelamento de uma episteme só, de uma narrativa só, um paradigma axiológico: você só pode trazer esse autor aqui, não pode trazer outra coisa, você não pode ter outra visão, você não pode trazer outros autores. Não sei se todas as universidades são assim, eu espero que não, eu quero acreditar que não, eu quero, inclusive, estudar nessas outras universidades porque lá na Universidade de São Paulo foi babado. Também não sei se em todas, porque a USP tem outros lugares, mas onde eu estudei (ECA) foi puxado. Foi onde eu ouvir barbaridades. E é uma estrutura muito difícil de mudar, muito difícil mesmo.

CEAF: Como é que você lida com essa estrutura racista?  Como você lida com desconforto e com a raiva produzida nesse contexto?

Cinthia Gomes: Eu vou começar pelo final, com a raiva produzida é o mais difícil, às vezes só fazendo macumba, só ficando louca e gritando com as pessoas mesmo. Brincadeira. Eu acho que a gente tem que analisar quando vale a pena se envolver numa briga e quando não, acho que a gente tem que ter uma estratégia multidisciplinar. Tem momentos em que não é estratégico você se envolver no embate porque você é a parte mais fraca mesmo, você está ali sendo intruso no mundinho de manutenção de privilégio de poder deles, então é óbvio que eles não querem abrir mão, e é óbvio que eles não querem que você entre. Então, em alguns momentos, você os deixa falando, fingindo que acredita (dá até um sorrisinho), faz cara de simpática e depois foi vai lá e faz tudo diferente, faz tudo do seu jeito. Às vezes não, às vezes tem que ter um embate mesmo, tem que colocar outro ponto de vista. E é bastante desgastante porque tem que se preparar muito, tem que estar muito bem embasada e ter uma paciência de explicar as coisas desde o começo, porque a branquitude não sabe várias coisas e a gente fica com ônus de explicar para eles. A gente já avançou muito na questão da elaboração, no resgate de epistemes negras, africanas e afro diaspóricas, e eles não manjam nada disso, estão por fora disso, eles não sabem que a gente já fez toda essa construção de conhecimento dentro e fora da universidade, porque para nós o saber existe em diferentes formas e em diversos campos, são produzidos em diversas formas historicamente dentro da comunidade negra.

Por exemplo, uma roda de jogo é uma produção de conhecimento, é um saber nosso ancestral que tem memória, modos de vida, renovação do axé, tem tudo. E a gente produz isso de diversas formas que não são reconhecidos na academia. Então quando a gente vai colocar um ponto de vista nosso, a gente tem que retroceder horrores porque eles não estão no ponto que em a gente está da elaboração daquilo. Então é paciência de voltar e explicar tudo desde do básico, que às vezes também não tenho. E tem uma outra consequência nefasta/pesada, que é: quando você não está com equilíbrio para utilizar todas as estratégias para ainda respirar e sair saudável, acontece os processos de adoecimento. No meu caso, eu também adoeci e foi muito importante algumas coisas. Primeiro, a minha vida de terreiro. Eu sou de terreiro de axé e todas as vezes que eu voltava para casa de axé eu voltava para casa melhor, então a espiritualidade e a ancestralidade cuidavam da gente, porque eles sabem que a gente tá aqui continuando a batalhando que eles começaram, então sempre voltava renovada, então é um ponto de força para mim. Segundo família, família também era a mesma coisa: meu pais moram no Rio e eu moro em São Paulo. Então quando eu estava derrotada, acabada, destruída, eu ia para a casa de mamãe e papai e ficava lá, dormia, recebia amor e carinho; ficava forte de novo e voltada. E amigos, quase que na mesma categoria de família. E os nossos grupos de militância também, voltar para militância, voltar para os coletivos para fazer reunião e desenvolver atividades, fazer coisas juntos está com as minhas manas (como a gente chama na Marcha) me fortalecia de novo também para continuar esses embates.

CEAF: E atualmente, em quais são os processos você está envolvida?

Cinthia Gomes: Eu continuo militando nesses dois grupos que eu falei, Jornalista Pela Igualdade Racial e Marcha das Mulheres Negras de São Paulo. Na comissão de jornalistas a gente tem diversas atividades, a gente tem um planejamento anual, então a gente não tem as mesmas atividades sempre, mas basicamente são atividade de formação para jornalistas e estudantes de jornalismo envolvendo a questão racial e comunicação. Uma certa vigilância do noticiário sobre coisas que envolvam racismo, principalmente por meio da fiscalização, da denúncia, nota de repúdio, fazendo texto, fazendo esses posicionamentos. Tem alguns projetos, que estão parados no momento, mas que vamos retornar em breve, sobre equidade de racial nas empresas jornalísticas. E eu aproveito também para levar um pouco do meu estudo do meu mestrado para comissão, então desde o ano retrasado a gente também tem feito atividades no sentido da promoção, da divulgação e do reconhecimento do Luiz Gama como jornalista, porque ele é mais conhecido como ativista, como poeta também algumas pessoas o estudam na literatura, mas como jornalista é uma descoberta mais ou menos nova.  Então você tem feito atividades também para divulgar a atuação e a importância dele no jornalismo, porque ele foi muito importante. Entre várias coisas, ele fundou o primeiro jornal ilustrado de São Paulo, mas quando a gente estuda isso na história d comunicação, só estuda que ele foi fundado pelo Ângelo Agostini, que era um ilustrador italiano, mas só Luiz da Gama era redator nesse jornal. O Agostini desenhava, mas o Luis escrevia (com alguns colaboradores, mas ele era o principal).

Então eu uso um pouco a COJIRA para fazer atividades que promovam esse resgate e luta contra esse apagamento histórico do nome de Luiz Gama na história do jornalismo, na história da comunicação no Brasil. Em relação à Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, a gente tem atividades ano todo, tem reunião o ano todo, a gente faz várias coisas. A nossa principal é a realização é uma marcha, um ato na rua todo dia 25 de julho, que é o dia internacional da mulher latino-americana e caribenha. Desde o ano passado a gente não está fazendo ato de rua por causa da pandemia. Aliás, por causa da pandemia, desde o ano passado, também criamos um mundo solidário que é um fundo de aplicação de recursos financeiros para compra de cestas básicas, porque muitas mulheres, principalmente as mulheres negras, foram afetadas financeiramente por não poder trabalhar ou perderem emprego na pandemia. A gente faz compra de cestas básicas para mulheres negras que façam parte do nosso coletivo ou que sejam indicadas, sejam próximas às mulheres do nosso coletivo.

A gente faz bastante atividades de formação para dentro e para fora também. A gente tem dois projetos na Marcha que são o projeto “Aquilombar” e o “Narrativas para a Liberdade”. O Aquilombar é para dentro, então somente as integrantes do coletivo que podem se inscrever e se inscrever para as atividades, que são basicamente aulas, encontros, palestras sobre temas tanto de formação política quanto de coisas práticas, digamos assim. O Narrativa de Liberdade é um projeto de formação política para as mulheres negras de fora do nosso coletivo. Então a gente organiza e chama as convidadas, e outras mulheres negras se escrevem para fazer esse curso. Eu também faço trabalho com a vereadora Érica, eu sou chefe de gabinete dele. A gente ganhou a eleição final do ano passado e estamos no primeiro mandato. Nesse mandato, a gente tem como prioridade trabalhar para a população negra, LGBTQIA+ vulnerável, principalmente atuando nas pautas de saúde, educação, cultura, direito à vida, geração de emprego e renda, ou seja, muitas pautas porque o nosso povo precisa de muita coisa. Então estamos desenvolvendo esse trabalho também, eu estou desenvolvendo esse trabalho junto com toda a equipe do gabinete também.

CEAF: Para o território, para o contexto, qual é a importância dos processos que você está desenvolvendo?

Cinthia Gomes: Eu vou dividir a noção de território em duas. Eu acho que existe um território geográfico e existe um território que é a nossa pelo, o nosso corpo, acho que tem um território chamado negritude também. Em um mundo globalizado, e falando de raça e combate ao racismo, ele pode ter uma dimensão local; por exemplo, meu trabalho no gabinete vai ter essa dimensão local, porque eu trabalho em um gabinete de uma vereadora, então eu só posso estar no suporte para o desenvolvimento de leis para São Paulo, então é especificamente aqui,  especificamente nesse trabalho, eu pretendo impactar positivamente construindo um legado de construção de políticas, de direito, de acesso a direitos para a população negra na cidade de São Paulo. Acho que tem a oportunidade de desenvolver um trabalho que vai ter um impacto legislativo e de fiscalização do executivo para o cumprimento e para a realização de políticas já previstas para a população negra com essa noção mais geográfica de território. Nas Marcha das Mulheres Negras, esse impacto também tem uma dimensão de território enquanto o local geográfico, na medida em que, por exemplo, a distribuição de cestas básicas é para mulheres aqui em São Paulo, para mulheres que fazem parte presencialmente do coletivo moram em São Paulo também; então as trocas que a gente tem são com essas mulheres (trocas de afeto, de conhecimento, de militância, de construção de militância). Mas acho que tem essa outra dimensão do território como o nosso corpo, como a nossa negritude.

Então, por exemplo, quando eu estou fazendo a militância acadêmica e falando da figura de Luiz Gama com pessoas que não necessariamente precisam estar aqui em São Paulo, isso extrapola essa dimensão do território como um ponto geográfico para ir para esse território que é o nosso corpo. As pessoas se conectam com essas ideias justamente contra essa identificação, por se identificar como uma pessoa negra, por admirar a cultura negra ou por se indignar contra o racismo. Então a gente faz esse tipo de conexão quando está fazendo esse outro aspecto da militância que não está ligado às coisas materiais, mas que é mais um embate de ideias, é mais um confronto de pontos de vistas, é mais um revelar uma verdadeira história, lutar contra pagamento histórico e trazer as questões simbólicas que eu acho tão importantes quanto às questões materiais envolvidas quando a gente fala de construção de identidade, de combate ao racismo, dos debates raciais para a superação das diferenças que o racismo estrutura, não só na sociedade brasileira, mas em todas as sociedades em que ele conseguiu se impregnar, que provavelmente deve ser todas as sociedades do planeta Terra.

CEAF: E pensando nessa experiência de estar no ambiente acadêmico e também ser uma comunicadora: como o racismo opera nestes dois universos?  O racismo opera maneira ou tem formas diferentes?

Cinthia Gomes: O racismo bravo, ele é boladão, muito sofisticado. Em cada esfera, ambiente e instituição em que ele penetra, ele desenvolve formas diferentes de atuar e ele é sempre eficaz em todas elas. Se o Governo Federal fosse eficiente igual ao racismo, já estava todo mundo vacina no Brasil. Nos meio de comunicação e na estrutura universitária o racismo opera de forma semelhante, principalmente quando ele trabalho com estereótipos e quando ele trabalha com o apagamento histórico ou epistemicídio, que é essa negação dos saberes, é essa negação do protagonismo de negros e negras como sujeitos históricos, como produtores de conhecimento, etc. Pode-se chamar de várias formas: de apagamento histórico, epistemicídio, racismo epistemológico, tudo isso é a mesma coisa. Por exemplo, na academia quando a gente pega as bibliografias dos cursos e vê que a grande maioria (80-90%) vai ser constituída de homens brancos europeus. Timidamente, hoje se começa a trazer autores que estejam fora desse eixo que sejam Afrodiásporicos, africanos ou mesmo asiáticos; ou seja, de outras matrizes, de outros lugares do planeta Terra com outras formas de pensar. Na comunicação, o racismo se dá no apagamento das pessoas negras como fontes, ou seja, se você vai fazer uma matéria sobre o PIB desse ano você vai sempre procurar um economista branco, em geral, ninguém pensa que existam economistas negros, e se tiver, vai ter que procurar porque ele não tem pessoas negras na sua lista de contatos. Então o comunicador não vê, ou finge que não vê, que todo mundo que ele entrevistou para fechar aquele jornal era branco. Os negros vão aparecer em tipos de matérias específicas como a seção de esportes porque existem atletas negros, no caderno de cultura porque tem cantores negros, na página polícia porque o criminoso era negro. Então é um apagamento do protagonismo negro eu vejo de forma similar na comunicação e na universidade.

CEAF: Quais foram as conquistas/impactos que você atingiu e quais você gostaria de atingir com a sua liderança?

Cinthia Gomes: O impacto que eu mais gosto quando eu vejo que ele acontece é quando você vê que a pessoa começa a pensar diferente, que a pessoa não tinha pensado sobre aquilo ainda e ela começou a pensar diferente e aquilo já mobilizou a vida dela, a mente dela, a cabeça dela, ela ser uma pessoa diferente. Não sou eu que faço isso sabe, mas quando você tem uma troca com uma pessoa e daquela troca existe uma mobilização em direção a uma coisa que antes não estava dentro do escopo de vida daquela pessoa. Eu tive a oportunidade de estar nessas trocas algumas vezes e isso é uma coisa que me deixa muito, muito feliz. Acho que isso acontece muito quando eu converso com jovens e quando eu converso com outras mulheres negras que têm de vivências diferentes da minha. Acho que tem uma coisa de você às vezes falar coisas que faz um “bum” na cabeça da pessoa, abre a cabeça dela e dali ela mudou a trajetória, interrompeu um processo de violência doméstica, voltou a estudar, sei lá, não estava dando continuidade de uma coisa legal porque não acreditava, porque não achava que era capaz, achava que não ia conseguir e viu que não é isso. Acho que isso acontece muito também em função de você levar as coisas sobre nós, sobre a nossa história, nossa cultura, nossas experiências, nossas vivências que elas não sabiam. Acontece muito isso porque, no Brasil, existe um processo muito cruel chamado Sistema de Ensino Oficial e que dá uma aniquilada ser negro. A gente não aprende nada legal em relação à nossa história ou cultura, às coisas que as pessoas negras fizeram no mundo, a gente não aprende nada relacionado a isso. Então as pessoas passam a vida inteira oprimidas na crença sobre a sua própria potencialidade. Então quando a gente eleva histórias como a do Luiz Gama, para o moleque ou para uma mulher, especialmente uma mãe, que não tiveram acesso antes a saber que outras pessoas negras vieram antes e que fizeram coisas fantásticas... Até ali a vida dela estava vindo de um jeito e quando elas ficam sabendo que a gente veio de um povo que já fez um monte de coisa antes, muda tudo, aí é babado.

CEAF: Quais são as outras realidades que estão sendo retrabalhadas a partir da sua liderança?

Cinthia Gomes: Acho que tem a ver com a resposta anterior. Acho que as trajetórias de vida das pessoas com quem eu tenho contato são impactadas por essas trocas em que, principalmente, o que eu tenho a proporcionar é para conhecer sobre história negra, sobre cultura negra, sobre o que a gente já fez e que foi apagado; e isso trazer um outro processo de conscientização ou até mais, é de uma consciência de si, que se chama hoje em dia de empoderamento. Eu acho que obviamente não sou eu que estou empoderando ninguém, mas que eu estou ali vocalizando um saber, um conhecimento, uma memória que nos foi tirada. E aí quando eu tenho esses encontros e falo isso com as pessoas e as pessoas estão impregnados por aquilo, dá para ela de volta a autonomia sobre a própria vida, fortalece a autonomia dela sobre o ser, sobre a sua vida, sobre seu destino, sobre as coisas que ela quer e o que não quer fazer, sobre o que ela vai  e não vai aceitar; muda a postura e muda a perspectiva de vida das pessoas saber de onde elas vieram, o que os nossos ancestrais e as nossas ancestrais fizeram antes de nós, e a partir daí o quê que a gente pode fazer.

CEAF: E para você, o que significa igualdade e equidade? Como você descreveria essas palavras?

Cinthia Gomes: Igualdade eu acho utópica, acho que nunca teve e nunca vai ter. Inclusive, acho que não é uma característica humana porque a gente não é igual mesmo e não sei se a gente tem que querer ser igual. O eu quero dizer é que a diferença é o que nos constitui, nós somos todos diferentes, não existe uma pessoa igual a outra mesmo a gente falando dentro do mesmo grupo étnico, social, de gênero e etc. Por exemplo, as mulheres não são iguais, uma pessoa negra não é igual a outra, uma pessoa pobre não é igual a outra pessoa pobre, um rico não é igual ao outro, o branco da mesma forma. A diferença faz parte nossa humanidade e em relação a isso, tudo bem.  O que é ruim é que quando essa diferença é hierarquizada, que é a isso que se refere o racismo: é um sistema inventado de hierarquização de uma outra invenção que é a raça. Então se inventou a raça e depois se inventou a superioridade e inferioridade delas.  Essa desigualdade é ruim, e para combater essa desigualdade eu acho que a palavra mais correta é a equidade. Não sei se me fez entender, mas quero dizer que a igualdade que a gente pode almejar e a que deveria existir é igualdade de acesso, a igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, igualdade de humanidade, de uma humanidade ter o mesmo valor que outra e não certos grupos serem considerados humanos e outros não, terão tratamento digno de humanidade e outros não.

CEAF: O que a gente precisa fazer para chegar nessa sociedade? O que precisamos superar, em que processo teremos que trabalhar para poder chegar até a sociedade equitativa e igualitária?

Cinthia Gomes: Como a gente vive no mundo capitalista, eu acho que a primeira coisa seria a questão do empoderamento econômico. Não fico feliz de falar isso porque foi o capitalismo mesmo que destruiu a gente e foi a partir da venda de vidas negras e do ganho financeiro sobre a comercialização de vidas negras que se constitui o capitalismo; e agora a gente tem que estar dentro dele tentando a equidade, então é muito cruel porque já é um sistema que foi feito a partir da nossa exploração e da nossa espoliação enquanto sujeitos das nossas próprias vidas. Então é muito difícil pensar numa solução para isso. Eu acho se a gente tivesse um sistema de governo,  sistema político que garantisse essas oportunidades de acesso e leis de acesso à saúde e que isso, depois, se traduzisse em oportunidades de ingresso e ascensão profissional, aliado a ter uma política de segurança pública que não visse a gente como alvo, que não que não tivesse uma força pública de segurança destinada a eliminar os povos negros, acho que seria o início de uma mudança estrutural para a gente chegar em uma sociedade mais equânime, mais equitativa, mas eu acho muito difícil isso porque tudo isso que eu falei é estruturado justamente para não ser assim. Então a gente tenta, a gente tem luta, a gente procura hackear o máximo possível essas estruturas de poder e dando o nosso “zig” e não sei quando a gente vai chegar. É uma luta muito difícil, é uma coisa que parece insolúvel, às vezes eu penso, mas por outro lado se a gente pensar numa perspectiva histórica já foi muito pior e graças à luta dos que vieram e das que vieram antes da gente, a gente está viva, a gente tá aqui e a gente não morreu, a gente não é mais escrava. É difícil, é lento e é longo, mas eu não quero que seja impossível, não posso acreditar que é impossível senão a gente vai ter que desistir agora, então um dia vai ter que rolar.

CEAF: E como é que a sua liderança contribui para essa construção de equidade?

Cinthia Gomes: Primeiro, eu acho que eu me coloco à disposição da continuidade dessa luta. Como eu falei ela não tá começando agora e não vai terminar agora, então precisa de muita gente se colocar à disposição. Já precisou e já teve muita gente que já se colocou, tem muitas pessoas agora e é preciso que a gente forme novas pessoas para continuar. Então hoje eu estou em um momento de ser a pessoa que está se colocando à disposição e que também está tendo a oportunidade de ter trocas com as pessoas mais novas para que outras, depois de mim, continuem. Então eu acho que principalmente isso é o que eu estou fazendo e, enquanto isso, pegando na mão e trazendo mais gente para multiplicar e continuar.

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